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2. O Nome da Rosa - Textos publicados na Folha

Na era da globalização, a paz global é impossível

(publicado em 19/01/2003)

UMBERTO ECO

Perto do final de dezembro, a Academia Universal das Culturas discutiu em Paris o tema de como se pode imaginar a paz nos dias de hoje. Não definir ou desejar, mas imaginar. Logo, a paz parece ainda ser não apenas uma meta distante, mas um objeto desconhecido. Os teólogos a definiram como a "tranquillita ordinis".

A tranquilidade de que ordem? Somos todos vítimas de um mito original: no início havia uma condição edênica, depois essa tranquilidade foi violada pelo primeiro ato de violência. Mas Heráclito nos preveniu de que "a luta é a regra do mundo, e a guerra é a geradora comum e senhora de todas as coisas". No início houve a guerra, e a evolução implica uma luta pela vida.

As grandes pazes que conhecemos na história, como a paz romana, ou, em nosso tempo, a paz americana (mas também já houve paz soviética, paz otomana, paz chinesa), foram resultados de uma conquista e uma pressão militar contínua através das quais se mantinha uma certa ordem e se reduzia o grau de conflitos no centro, à custa de algumas tantas pequenas, porém sangrentas, guerras periféricas. A coisa pode agradar a quem está no olho do furacão, mas quem está na periferia sofre a violência que serve para conservar o equilíbrio do sistema. "Nossa" paz se obtém sempre ao preço da guerra que sofrem os outros.

Isso deveria nos levar a uma conclusão cínica, porém realista: se queres a paz (para ti), prepara a guerra (contra os outros). Entretanto, nas últimas décadas, a guerra se transformou em algo tão complexo que não costuma mais chegar ao fim com uma situação de paz, nem que seja apenas provisória. Ao longo dos séculos, a finalidade da guerra tem sido a de derrotar o inimigo em seu próprio território, mantendo-o no desconhecimento quanto a nossos movimentos para poder pegá-lo de surpresa, conseguindo forte solidariedade na frente interna. Hoje, depois das guerras do Golfo e de Kosovo, temos visto não apenas jornalistas ocidentais falando das cidades inimigas bombardeadas, como também os representantes dos países adversários expressando-se livremente em nossas telas de televisão. Os meios de comunicação informavam ao inimigo sobre as posições e os movimentos dos "nossos", como se Mata Hari tivesse se transformado em diretora da televisão local. Os chamados do inimigo dentro de nossa própria casa e a prova visual insuportável da destruição provocada pela guerra levaram a que se dissesse que não se deveriam assassinar os inimigos (ou mostrar que eram assassinados apenas por engano), e, por outro lado, parecia insustentável a idéia de que um dos nossos pudesse morrer. Dá para se fazer uma guerra nessas condições?

As coisas ficaram ainda piores depois de 11 de setembro. O inimigo está em nossa casa, mas agora os meios de comunicação não podem mais monitorá-lo, porque ele está na clandestinidade. Cada ato terrorista vem ampliado pelos meios de comunicação, que, desse modo, fazem o jogo do adversário. Vão tirar de Saddam as armas que o Ocidente lhe forneceu e que, talvez, ainda lhe esteja fornecendo, mas o verdadeiro inimigo nem sequer precisa mais de armas e tecnologias próprias: usa as daquele que quer destruir. Se, para bombardear Londres, os alemães precisaram fabricar suas V1 em casa, para destruir duas torres americanas foram usados aviões americanos. Cai, finalmente, a divisão nítida entre as frentes, e, se as guerras são favoráveis aos fabricantes de armas, são totalmente prejudiciais às companhias aéreas, ao turismo e a toda a rede comercial globalizada.

Assim, a nova forma da guerra é, de um lado, permanente devido à imprevisibilidade do adversário e, do outro, porque cada beligerante tem medo de levá-la até as últimas consequências. Vários interesses multinacionais tendem a transformá-la em endêmica, mas não decisiva. Enfim, se, no passado, a guerra em outras partes garantia a paz no centro do império, hoje é exatamente ali que o inimigo golpeia mais facilmente (e é também ali que ele guarda seus recursos financeiros próprios, nos bancos do adversário). A guerra em outra parte já deixou de garantir a paz em nossa própria casa. Na era da globalização, a paz global se mostra impossível. Resta, então, a possibilidade única de trabalhar por uma paz como manchas de leopardo, criando, sempre que isso é possível, situações pacíficas na imensa periferia das guerras que se desenrolam sucessivamente. Uma paz local se estabelece quando, diante do cansaço daqueles que se batem, uma agência negociadora se propõe como mediadora numa zona precisa do mundo e produz uma queda na beligerância. Uma série contínua dessas "pequenas pazes" pode, a longo prazo, ir diminuindo as condições de tensão geradas pela guerra permanente. É como dizer que uma pequena paz feita hoje em Jerusalém contribuiria para a redução das tensões em todo o epicentro da guerra global.

A paz universal é como o desejo da imortalidade, tão difícil de satisfazer que as religiões a prometem para depois da morte, não para antes. Uma paz pequena, pelo contrário, é como um gesto do médico que sara uma ferida. Não é uma promessa de imortalidade, mas, pelo menos, uma maneira de retardar a morte.

Umberto Eco, escritor e ensaísta italiano, é autor de "O Nome da Rosa"

Tradução de Clara Allain

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