4. História do Cerco de Lisboa - Textos publicados na Folha
O percevejo, as carnes e a utopia
(publicado em 18/10/1998)
JOÃO ADOLFO HANSEN
especial para a Folha
A literatura moderna é pontuada de pequenas coisas aparentemente acessórias, cenas, objetos, atmosferas, que às vezes significam para além de sua particularidade sensível, condensando alegoricamente o sentido da experiência de todo um tempo e, nos casos mais felizes, o compromisso ético do escritor com a forma. No início de "Memorial do Convento", Saramago compõe uma dessas alegorias felizes ao inventar os percevejos de uma cama. Nela, aterrorizada pelo Inferno, jaz a rainha de Portugal, a austríaca d. Maria Ana Josefa, suando sob um cobertor de penas. Naturalmente suplicante, naturalmente vaso de receber, aguarda el-rei dom João 5º. Ei-lo que chega, como habitualmente vem, duas vezes por semana, para cumprir o ritual da fecundação real. Enquanto o séquito de camaristas e damas preliba, obsequioso, o efeito sacramental da consumação do ato, índices da carolice do par, da subserviência dos áulicos, da fusão de religião e política, da indistinção de público e privado, típicos da sociedade ibérica de Antigo Estado, compõem a solenidade como barbárie barroca. A gente da nação e outras gentes estão sendo queimadas no país.
Ainda no primeiro capítulo, a breve referência ao convento-palácio de Mafra relaciona cópula real, edificação religiosa e poder. Aqui, o princípio paródico da narração já começou a mesclar e a alternar vozes e quadros, dissolvendo a matéria da hierarquia nas misturas satíricas. O autor é moderno e conta lentamente, por vezes de modo arrastado, mas não dá ponto sem nó. Imita o tempo frio de um mundo arcaico e, se acusa a inutilidade idiota do sofrimento representado no ponto de vista de plebeus, está interessado no presente. A alusão divertida a um Saramago sentenciado pela Inquisição por culpas de insigne feiticeiro e à Lisboa de hoje sugere que o conservadorismo não desapareceu no moderninho neoliberal da União Européia. Como o nosso, o tempo reconstituído não é livre. Mas seu horror, demonstra, tem outras razões. Assim, é de novo o passado que retorna no infante esperado como a futura cabeça do reino. No seu corpinho mortal, teologia e política sagrarão, irmanadas, a perpetuidade do poder que ordena a elevação de Mafra. O convento-palácio é a concreção desse mundo fechado onde a repetição é lei. Condensa e distribui a hierarquia em que a maior proximidade espacial, visível nos corpos mortais na cama real, proclama a naturalidade da maior distância social, ostentada na soberania imortal perpetuada neles e por eles. Aqui, a liberdade individual tem a forma da subordinação da vontade coletiva prescrita desde um passado imemorial. Por isso, a rudeza das finas maneiras de corte corresponde simetricamente ao terror explícito do fogo da Inquisição. O par real não escapa à repetição, reproduzindo exemplarmente, na geração do infante, a culpa e o medo da disciplina do corpo.
Algo perfura, contudo, a beata carne suada. Alegoria eficaz, a cama onde obram a política católica tem percevejos. É uma cama satírica, ancha, dourada e barroca, vem de Holanda e custou caro. Mas, vileza própria de fidalgos mercantilistas, para não lhe estragar os ouros, não se pode aproximar dela um trapo a arder que mate os bichos. É fatal usá-la apesar deles, percevejos reais, que chupam o sangue azul como chupam o natural. Percevejos alegóricos, não podem ser mortos para não se estragar a sutil ironia narrativa. Percevejos utópicos, não podem ser mortos para que a corrosão da ironia se alastre, praga, pelo corpo místico do Estado e perfure as pedras e o sentido de Mafra como um desejo surdo de outra coisa, lá e aqui. Por exemplo, o de voar.
É a esperança de transcender o tempo ruim que tece a alegoria de percevejos na trama da vida de quatro personagens, inventados como refletores da opinião do autor sobre a História matéria da sua história. Personagens de exceção, vivem as transcendências de vontades desviantes: Blimunda, que pode ler outras personagens por dentro, roubando-lhes a vontade; Baltasar, que sem a mão esquerda tem a vontade inteiramente dedicada à terra; Domenico Scarlatti, que a modula leve e engenhosa na música saltitante do cravo; Bartolomeu de Gusmão, que a realiza, pois é, literalmente, o Voador. As diferenças, princípio de dissociação irônica do padrão absolutista de subordinação e integração hierárquicas das vontades, esboçam a expectativa de uma vida que há de pôr termo a outras petrificações.
Por exemplo, nos anos iniciais do século 18, circulou em Lisboa um folheto, transformado pelo romance, "Descrição Burlesca dum Imaginário Aeróstato e Outras Sátiras ao Pe. Bartolomeu Lourenço de Gusmão", com um texto em prosa de autor anônimo e às tiras de Tomás Pinto Brandão, amigo do poeta Gregório de Matos. Como este, Pinto Brandão sabia que a autonomia prometida nos vôos da vontade tende a subverter o costume. Suas sátiras associam inovação científica e bruxaria, afirmando que a passarola demoníaca, o balão inventado por Bartolomeu de Gusmão, infringe a lei natural emanada da divina Providência a reger a concórdia e a paz do bem comum garantido pela soberana razão de Estado aliada da Santa Madre Igreja. E, revolucionário como Gregório de Matos, que por "revolução" entendia o movimento circular de um corpo que sucessivamente retorna ao ponto inicial donde saiu, é também original como Gregório, que invoca autoridades que reponham as coisas na ordem de origem. Como de hábito, as autoridades podem queimar a passarola e o seu autor.
Assim, não por acaso a história do convento e a da máquina voadora anunciada na alegoria de percevejos correm paralelas. Alegóricas de transcendências, Mafra e a passarola obviamente se opõem. Enquanto se vai construindo muito devagar a passarola na quinta abandonada de Aveiro, só à custa de muito sofrimento anônimo sua utopia chega a elevar-se no céu de estrelas fixas do imaginário neo-escolástico. Quando sobe, a engenhoca rompe com a ortodoxia que lhe controla o princípio-motor, a vontade imponderável dos que carregam pedras de Mafra, porque transforma essa potência da alma na força ativa de inovações. A passarola, diz o narrador, é "outra basílica". Mas sem o milagre suposto na metáfora religiosa, a não ser o milagre artístico da determinação técnica da forma alegórica da vontade. Por ser a passarola coisa do futuro, comenta o narrador, o acadêmico se retiraria e só voltaria quando ela fosse coisa do passado. Aqui, a literatura combate a desistência e o conformismo do mundo controlado. Na loucura de Gusmão, na morte de Baltasar, no silêncio de Scarlatti, na solidão de Blimunda, sua promessa de vôo vai deixando para trás o sangue ruim do tempo aos percevejos alegóricos.
João Adolfo Hansen é professor de literatura brasileira da USP, autor, entre outros, de "A Sátira e o Engenho" (Companhia das Letras).
|