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4. História do Cerco de Lisboa - Textos publicados na Folha

Os processos de Saramago

(publicado em 18/10/1998)

ADRIANO SCHWARTZ
Editor-adjunto do Mais!

Foi preciso esperar quase um século --a primeira indicação aconteceu em 1901-- para que um autor de língua portuguesa ganhasse o Nobel. Com a conquista do único prêmio literário de âmbito mundial, o nome de José Saramago passa a figurar ao lado de diversos autores fundamentais e de alguns outros ilustres desconhecidos para o leitor contemporâneo que obtiveram o reconhecimento da Academia Sueca (leia a lista de todos os ganhadores na pág. 5-6).

A questão mais fartamente debatida desde que se anunciou, no dia 9 deste mês, o ganhador do prêmio decorre exatamente daí: autor fundamental ou candidato a futuro ilustre desconhecido? A discussão é falsa e prematura, no fundo tão irrelevante quanto a condenação à escolha do declaradamente ateu Saramago feita pelo Vaticano pouco depois do anúncio.

Na verdade, do lado dos elogiosos há muitos que exultam pelo "reconhecimento, ainda que tardio", da língua portuguesa e de sua literatura, e, dos detratores, muitos que detestam as posições político-religiosas ou o sucesso de vendas do autor. Ou seja, nesse universo povoado de não-leitores, entre convictos "nacionalistas linguísticos", ferrenhos anticomunistas etc., fica em algum canto, timidamente escondida, a preocupação com os aspectos literários, com a obra.

Talvez uma das justificativas para isso seja a de que os livros de Saramago não se deixam comentar com facilidade. É como diz Eduardo Lourenço, o mais importante ensaísta português, em "Um Teólogo no Fio da Navalha" (em "O Canto do Cisne", Editorial Presença), provavelmente o melhor texto já escrito sobre o escritor:

"Não conheço em língua portuguesa autor algum --salvo Pessoa-- que tão entranhadamente tenha entrelaçado à sua criação a consciência do mesmo ato de criação, a questão do seu ser e do seu sentido. Como acompanhamento da mão esquerda, toda a sua ficção se envolve no eco musical que a prolonga, como se a precedesse, integrando em si os efeitos do milagre em que consiste. Assim que nada pode ser dito sobre 'os fins' que nessa ficção já estão visíveis ou que invisíveis a comandam, que não seja glosa da glosa permanente com que José Saramago acompanha uma narração".

O sucesso tardio

A trajetória do escritor é bem conhecida. Publica o romance "Terra do Pecado" em 1947 (há pouco relançado em Portugal pela Editorial Caminho). Abandona a literatura por quase 20 anos, quando retoma seus escritos, lançando livros de poemas e coletâneas de crônicas. Em 1975, é demitido do jornal português "Diário de Notícias" e decide se dedicar exclusivamente à literatura. Surgem, então, o "Manual de Pintura e Caligrafia", alguns contos e peças.

É com quase 60 anos, porém, quando lança, em 1980, "Levantado do Chão", que Saramago define sua maneira peculiar de escrever. É nesse romance que ele resolve abolir todos os sinais de pontuação, exceto o ponto final e a vírgula, esta utilizada inclusive como traço indicativo do diálogo, conferindo à narrativa uma estranha e potente fluência. Com "Levantado do Chão" e, principalmente, "Memorial do Convento" (1982), o romance seguinte (leia artigo à pág. 5-7), que conta a construção do convento de Mafra, Saramago se torna um sucesso de crítica e

vendagem.

Em 1984, ele publica "O Ano da Morte de Ricardo Reis", aquela que é, possivelmente, sua obra-prima até aqui. A idéia que originou o livro é simples e engenhosa: quando morre, em 1935, Fernando Pessoa só havia "matado" um de seus heterônimos, Alberto Caeiro; que teria acontecido com os outros, pensou Saramago? É assim que resolve contar como, após receber um telegrama de Álvaro de Campos informando-o da morte de Pessoa, Ricardo Reis resolve deixar o Brasil, onde morava, e voltar para Lisboa, local em que passará o último ano de sua vida, em meio a dois amores, encontros com o fantasma de seu criador e todos os eventos de uma conturbada Europa que vivia os prenúncios da Segunda Guerra Mundial.

Os dois romances subsequentes, "A Jangada de Pedra" (1986) e "História do Cerco de Lisboa" (1989), lidam, respectivamente, com a inserção de Portugal no continente europeu e com o próprio surgimento da nação portuguesa. Apesar de "A Jangada de Pedra" ser mais conhecido, é no paralelo traçado entre as relações de amor dos casais Raimundo Silva-Maria Sara (no presente) e Mogueime-Ouroana (em 1147, momento da tomada de Lisboa aos mouros), em "História do Cerco de Lisboa", que o autor delineia mais elaboradamente a sua concepção do acontecimento transgressor como motor de um humilde, limitado, mas necessário, engrandecimento possível.

Em 1991, Saramago lança sua obra mais polêmica, "O Evangelho Segundo Jesus Cristo". Ao recontar a história de Cristo, o autor provocou a ira de religiosos em todo o mundo, não tanto por seu Jesus, mas pela maneira como retratou Deus, um calculista manipulador, disposto aos mais cruéis atos para aumentar seu rebanho na Terra.

É, porém, até simplório se referir ao livro desta maneira. Escrito com maestria e contendo algumas das mais belas páginas da língua portuguesa neste século, o romance faz parecer ridícula a tentativa similar do norte-americano Norman Mailer, outro candidato ao Nobel, em "O Evangelho Segundo o Filho" (Record, 1997).

Com a publicação do "Evangelho", encerra-se um ciclo na obra do escritor e inicia-se outro, marcado, concretamente, pela sua mudança de Portugal para a ilha de Lanzarote, na Espanha, e, literariamente, pela adoção de uma postura mais abstrata e parabólica em suas narrativas.

O primeiro resultado desse novo processo --e esta palavra, em Saramago, adquire sentidos bem peculiares-- é o aterrorizador "Ensaio sobre a Cegueira". Primeira parte de uma anunciada trilogia, o romance aborda a expansão de uma doença nova, espécie de cegueira que contagia a todos e provoca a "visão" de uma brancura absoluta.

No ano passado, Saramago publicou "Todos os Nomes", que conta a história do escriturário José, funcionário da Conservatória Geral do Registro Civil, e de como sua inusitada mania --colecionar recortes sobre pessoas famosas-- acaba por modificar sua vida.

Paralelamente a sua produção romanesca, Saramago tem, nos últimos anos, elaborado um diário --editado anualmente com o título de "Cadernos de Lanzarote". No momento, trabalha em um romance que deverá se chamar "A Caverna". Já há algum tempo adia o projeto do "Livro das Tentações", uma autobiografia que irá somente até seus 14 anos.

Oito datas

1922 Nasce na cidade de Azinhaga, na província de Ribatejo (Portugal)

1939 Termina o curso de serralheiro mecânico

1947 Publica "Terra do Pecado", seu primeiro livro

1966 Após quase 20 anos sem publicar, lança "Os Poemas Possíveis" (Editorial Caminho)

1975 Entre 11 de março e 25 de novembro, é diretor-adjunto do jornal "Diário de Notícias". Demitido, resolve se dedicar apenas à literatura

1991 Após o governo português negar a inscrição de "O Evangelho Segundo Jesus Cristo" no Prêmio Europeu de Literatura, se auto-exila na ilha de Lanzarote (Espanha)

1995 Vence o Prêmio Camões

1997 Lança com o compositor Chico Buarque e o fotógrafo Sebastião Salgado o livro "Terra" em apoio ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra

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"Sargento Getúlio"
Lançado: 21/12


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