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4. História do Cerco de Lisboa - Textos publicados na Folha

Até os limites da realidade

(publicado em 06/12/1998)

JOÃO ALEXANDRE BARBOSA
especial para a Folha

Vejo agora que venho lendo a obra de José Saramago há muito tempo. A prova está na mistura de edições em que tenho os seus textos publicados por duas ou três editoras portuguesas e, a partir de uma certa época, a brasileira Companhia das Letras, que, para quem lê no Brasil, seguindo aquilo que é feito, do lado de Portugal, pela Editorial Caminho, veio dar uma certa ordem no caos editorial que costumam sofrer os escritores de língua portuguesa.

E por aí se vê que, embora tenha começado como romancista desde 1947 com "Terra do Pecado", publicado pela Editorial Minerva, somente em 1977, com "Manual de Pintura e Caligrafia, da Edição Moraes, assume a identidade de romancista que, para o público mais amplo, atinge a sua plenitude com a publicação, em 1982 e já pela Caminho, do "Memorial do Convento".

Duas consequências para a reflexão: durante 30 anos entregou-se ao jornalismo e à poesia (de que dão notícias os livros "A Bagagem do Viajante", "Os Apontamentos" e "Os Poemas Possíveis", "Provavelmente Alegria" e "O Ano de 1993", respectivamente) e somente há 21 anos vem escrevendo os romances que lhe conferem, sem qualquer sombra de dúvida, a posição de um dos melhores prosadores de língua portuguesa deste século que vamos terminando --e, para dizer a verdade, o plural só está aí pela existência anterior de João Guimarães Rosa.

São dez romances: além dos já citados "Terra do Pecado", "Manual de Pintura e Caligrafia" e "Memorial do Convento", "O Ano da Morte de Ricardo Reis", "A Jangada de Pedra", "A História do Cerco de Lisboa", "O Evangelho segundo Jesus Cristo", "Ensaio sobre a Cegueira" e "Todos os Nomes". E não é muito difícil estabelecer, desde logo, uma marca narrativa que, por assim dizer, articula a variedade ficcional de cada um: a presença forte de um narrador, quase sempre no limiar da dicção autobiográfica, que busca fixar, no patamar mais objetivo da história e da realidade circunstancial, as dissonâncias das experiências subjetivas de que a linguagem tem dificuldades em dar conta.

Neste sentido, o chamado romance histórico sofre, com Saramago, um desvio fundamental: a história circunstancial não lhe serve apenas para alimentar a imaginação, mas esta, por meio de pequenos e substanciais erros de leitura, como vai estar explícito naquele "não" introduzido pelo revisor de "A História do Cerco de Lisboa", cria uma complexidade de maior realidade, pois inclui no real histórico as dissonâncias da própria linguagem que é utilizada para a sua apreensão. O que, por outro lado, permite ou mesmo imanta a presença contínua de uma desconfiança de base para com os dados históricos, frequentemente embaralhados pelo imaginário da linguagem. E como este, no caso de um romancista, está constituído, sobretudo, pelas fontes próprias da tradição narrativa, o chamado romance histórico, em Saramago, inclui necessariamente, e de modo solidário, a história do próprio gênero. Por isso, é possível dizer que, na esteira do que há de mais inovador na narrativa moderna e pós-moderna, o romance de Saramago é uma prolongada discussão acerca das relações possíveis entre a representação da realidade pela linguagem da narrativa e as inserções operadas pela imaginação ficcional.

Quando, portanto, o próprio Saramago apontava Pessoa, Borges e Kafka como, para ele, os mais importantes escritores do século, estava sinalizando para aquilo de que a sua própria obra dá testemunho, isto é, quer para a multiplicidade de vozes ficcionais que está em Pessoa, quer para a realidade da ficção, como está em Borges, quer para a precisão do sonho e do imaginário de Kafka, tudo, no entanto, por assim dizer, sob a tensão de uma consciência dilacerante da linguagem. Veja-se, por exemplo, o modo pelo qual, no seu último romance, "Todos os Nomes", transmite ao leitor lugares e tarefas que constituem o espaço da grande sala da Conservatória Geral do Registro Civil e que serve de pórtico à narrativa:

"A disposição dos lugares na sala acata naturalmente as precedências hierárquicas, mas sendo, como se esperaria, harmoniosa deste ponto de vista, também o é do ponto de vista geométrico, o que serve para provar que não existe nenhuma insanável contradição entre estética e autoridade. A primeira linha de mesas, paralela ao balcão, é ocupada pelos oito auxiliares de escrita a quem compete atender ao público. Atrás dela, igualmente centrada em relação ao eixo mediano que, partindo da porta, se perde lá no fundo, nos confins escuros do edifício, há uma linha de quatro mesas. Estas pertencem aos oficiais. A seguir a eles vêem-se os subchefes, e estes são dois. Finalmente, isolado, sozinho, como tinha de ser, o conservador, a quem chamam chefe no trato cotidiano.

A distribuição das tarefas pelo conjunto dos funcionários satisfaz uma regra simples, a de que os elementos de cada categoria têm o dever de executar todo o trabalho que lhes seja possível, de modo a que só uma mínima parte dele tenha de passar à categoria seguinte. Isto significa que os auxiliares de escrita são obrigados a trabalhar sem parar de manhã à noite, enquanto os oficiais o fazem de vez em quando, os subchefes só muito de longe em longe, o conservador quase nunca. A contínua agitação dos oito da frente, que tão depressa se sentam como se levantam, sempre às corridas da mesa para o balcão, do balcão para os ficheiros, dos ficheiros para o arquivo, repetindo sem descanso estas e outras sequências e combinações perante a indiferença dos superiores, tanto imediatos como afastados, é um factor indispensável para a compreensão de como foram possíveis e lamentavelmente fáceis de cometer os abusos, as irregularidades e as falsificações que constituem a matéria central deste relato".

Eis, portanto, um traço estilístico de Saramago em sua essência: os dados da realidade objetiva são expostos até os seus últimos limites, não obstante as interferências irônicas, para que então possa surgir o elemento de dissonância que se introduz pela movimentação final do trecho citado e que é sua decorrente: o erro, o abuso, a irregularidade ou a falsificação que transformam a rasura do nome num motivo de procura pelo nome que é o romance e que por aí faz o leitor retornar, mesmo que não o saiba, às fontes primordiais do gênero narrativo. Mas a busca pelo nome, que é também a da identidade, tudo envolve, desde aquele que busca até o objeto que se busca e, por isso, a história se confunde com as histórias individuais, sejam as do personagem Sr. José, sejam as deste romance que dialoga com as suas origens. Nascimento e morte, fichas hierárquicas da Conservatória, diapasões pelos quais se mede o pulsar da realidade, é o espaço e o tempo que são alterados e renomeados pela presença do erro que somente o imaginário da ficção foi capaz de provocar.

João Alexandre Barbosa é professor aposentado de teoria literária da USP. Autor, entre outros, de "A Biblioteca Imaginária" (Ateliê Editorial).

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