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4. História do Cerco de Lisboa - Textos publicados na Folha

As artemages de Saramago

(publicado em 06/12/1998)

LEYLA PERRONE-MOISÉS
especial para a Folha

Desde que o Prêmio Nobel concedido a José Saramago foi anunciado, as notícias e reações, nos jornais portugueses e brasileiros, apresentaram algumas recorrências dignas de nota. Essas manifestações se concentraram em três pontos: o consenso internacional sobre o merecimento do prêmio, o fato de este ser "um prêmio concedido à língua portuguesa" e o "milagre" desse acontecimento.

De fato, os jornalistas da Suécia e de outros países destacaram, no dia seguinte, que nunca a escolha do premiado fora tão consensual e a repercussão tão favorável. O jornal liberal "Dagens Nyheter" de Estocolmo (meio milhão de tiragem diária) estampava: "Ao escolher José Saramago, a Academia Sueca premiou uma obra literária que é apreciada por toda gente e que não será posta em questão por ninguém". O "New York Times" dizia: "Nenhum candidato ao Prêmio Nobel merece mais um reconhecimento duradouro do que este romancista". Na França, até mesmo "Le Figaro", jornal politicamente à direita, tinha como manchete: "Um Nobel indiscutível". Só destoavam o jornal do Vaticano, lamentando que se desse o prêmio a um "comunista inveterado", e alguns inimigos locais do premiado.

Quanto às outras duas reações recorrentes, elas são compreensíveis, mas, de certa maneira, equivocadas. O prêmio pode ser sentido como pertencente a todos os grandes escritores de língua portuguesa deste século, e o próprio Saramago teve a generosidade de o dizer. Mas não nos esqueçamos de que o Prêmio Nobel não contempla literaturas nacionais em seu conjunto. Alguns dos laureados anteriores pertenciam a literaturas e línguas numericamente pouco expressivas; outros, a literaturas e línguas largamente consagradas. Alguém diria que o prêmio de Claude Simon, em 1985, foi dado à francofonia? O argumento de que um Nobel leva os leitores do mundo todo a lerem outras obras na língua do premiado também é duvidoso, mesmo porque o reconhecimento internacional ocorre pela via da tradução e, traduzido, o escritor é apreciado por outros parâmetros que não a língua natal. Por acaso todos se puseram a ler literatura islandesa só porque Halldör Laxness ganhou o prêmio em 1955? O próprio Saramago comentava há dois anos, numa entrevista: "O Prêmio Nobel não aumenta o prestígio de uma literatura e isso, ao contrário do que, erradamente, se vai dizendo por aí. Se amanhã a literatura portuguesa tiver a honra de um Prêmio Nobel não ganhará mais prestígio no mundo. Que idéia!" ("Jornal de Letras", 1997).

E, finalmente, o prêmio só foi um "milagre" se o considerarmos a partir do velho complexo de exclusão dos lusófonos, ou com a pouca confiança que tínhamos na isenção política do juri de Estocolmo. Se o considerarmos, porém, do ponto de vista do valor literário, o prêmio não foi nenhum milagre. Foi dado a um escritor "inveterado" que, ao contrário do que se diz, não apareceu de repente, mas que tem produzido, ao longo de décadas, uma obra vasta que abarca vários gêneros literários (poesia, crônica, dramaturgia, conto, romance, diário). Digamos então, de uma vez por todas: Saramago recebeu o prêmio por sua obra pessoal, inconfundível e intransferível. Conquistou-o por seu enorme talento, por seu obstinado trabalho, e o juri não fez mais do que sua obrigação.

Dizer por que Saramago merecia esse prêmio não é necessário. Desde o "Memorial do Convento" (1982) ele tem conseguido uma proeza raríssima na literatura moderna: ser respeitado pela crítica especializada, ser objeto de pesquisa e ensino em universidades de vários países e ter imediatamente um vasto público leitor, nos países de sua língua e em todos aqueles em que foi traduzido. Isso, sim, é um milagre. Um milagre para o qual, se formos ateus como ele, buscaremos uma explicação racional; entretanto, se também entendermos de arte como ele, saberemos de antemão que a explicação nunca será completa. O êxito de uma obra artística depende de uma combinação de fatores que nunca pode ser totalmente explicada. Em "Manual de Pintura e Caligrafia" (1977) Saramago lembrava que, no Alentejo, o povo usava a palavra "artemages" para designar as artes mágicas. Tentemos, então, recapitular alguns aspectos das "artemages" desse nobelizado.

Para os leitores de sua própria língua, Saramago é antes de tudo um estilo. Em sua escrita, a frase portuguesa adquire um ritmo particular, obtido por simetrias, incisas, retomadas e inversões, num balanço harmonioso que conduz a um acabamento perfeito. É como se a língua chegasse aí a uma beleza e a uma funcionalidade plenas. Poderíamos dizer, acerca das melhores páginas de Saramago, o que Pessoa disse de Vieira: "Aquele movimento hierático da nossa clara língua majestosa, aquele exprimir das idéias nas palavras inevitáveis, correr de água porque há declive (...), aquela grande certeza sinfônica" (Bernardo Soares, "Livro do Desassossego").

O aspecto ao mesmo tempo artificioso e natural do português de Saramago resulta de uma engenhosa aliança do erudito com o popular, do livresco com a oralidade. Sua prosa incorpora uma rica tradição literária, de Fernão Lopes a Vieira, Camilo Castelo Branco, Eça de Queirós e Pessoa, aí presentes num intertexto que não é apenas alusivo ou citacional, mas que age num nível mais difícil de captar, o da arquitetura sintática, da prosódia, das técnicas narrativas e descritivas. A essa tradição, Saramago trouxe sua nota pessoal que, na superfície do texto, consiste na supressão da maior parte dos sinais convencionais de pontuação, marcadores de pausas ou de entoação. Esse modo de escrever, segundo ele, lhe ocorreu de repente após a 20ª página de "Levantado do Chão" (1980) e tornou-se desde então sua marca registrada.

A supressão total ou parcial de pontuação, largamente praticada desde o início do século pelos prosadores de vanguarda (em Portugal por Almada Negreiros), não tem, em Saramago, um intuito puramente experimental, mas decorre do caráter oral de sua prosa, mais proferida do que escrita, e proferida com larguíssimo fôlego. Essa prática só funciona plenamente porque Saramago tem o domínio absoluto da lógica discursiva, do ritmo da frase e da respiração do falante, de modo que seu leitor jamais se extravia nos segmentos do discurso ou confunde os interlocutores de um diálogo.

A oralidade de Saramago é a do contador de histórias, que embala o ouvinte com sua voz, mas, sobretudo, o mantém suspenso a uma fabulação. Esta capacidade de fabular e de manter o interesse do receptor é uma qualidade que independe da língua, e é ela que tem garantido o êxito do escritor junto aos leitores das inúmeras traduções de suas obras. Não por acaso "Levantado do Chão", livro inaugural de sua grande fase romanesca, foi precedido de uma viagem ao Alentejo, onde ele se reabasteceu das histórias ouvidas desde a infância. O paralelo com Guimarães Rosa, nesse ponto, é inevitável. As obras de ambos alcançam plena comunicabilidade na leitura em voz alta, quando reatam com suas raízes orais. E ambos alcançam a universalidade a partir do regional.

Embora tendo alcançado o domínio de seu estilo próprio com o "Memorial do Convento" (1982), Saramago não cedeu à facilidade de nele se instalar definitivamente. Desde então, e de romance a romance, seu estilo tem-se transformado. Das volutas barrocas adequadas ao tema setecentista do "Memorial", ele passou a um discurso enxuto de relato policial em "O Ano da Morte de Ricardo Reis" (1984) e chegou, depois, ao milagre estilístico de "O Evangelho segundo Jesus Cristo" (1991), em que reciclava com maestria o profetismo evangélico e o lirismo do "Cântico dos Cânticos". Em seus últimos romances, "Ensaio sobre a Cegueira" (1995) e principalmente "Todos os Nomes" (1997), sua escrita se despojou de toda pirotecnia estilística, para alcançar um ideal clássico: a clareza luminosa e a precisão incisiva, aquela aparente simplicidade que só se conquista com muito trabalho e experiência. O escritor tem consciência dessa evolução de seu estilo, como declarou em conversa com Carlos Reis, em janeiro deste ano: "Julgo estar a assistir, nestes últimos livros, a uma espécie de ressimplificação. Hoje verifico que há em mim como que uma recusa a qualquer coisa em que me divertia, que era essa espécie de barroquismo, qualquer coisa que eu não levava, mas que de certo modo me levava a mim; e estou a assistir, nestes últimos dois livros, a uma necessidade maior de clareza".

A evolução do estilo de Saramago é correlata à evolução de sua temática e, em decorrência desta, da escolha de gênero. As histórias por ele narradas sempre tiveram uma função de parábola, isto é, uma narração alegórica que remete a realidades e reflexões de ordem geral e superior a dos eventos narrados. Essa tendência à parábola, que no "Evangelho segundo Jesus Cristo" pôde explicitar-se pelo remissão alusiva ao próprio texto evangélico, glosado e subvertido em múltiplos microrrelatos, expandiu-se no "Ensaio sobre a Cegueira" e "Todos os Nomes", que podem ser lidos como parábolas desenvolvidas, o primeiro remetendo à cegueira coletiva da humanidade atual, e o segundo remetendo à busca individual de liberdade e amor num mundo burocratizado, totalitário e necrófilo.

Quem leu apenas uma ou duas obras do escritor ignora a riqueza e a variedade do conjunto e pode formar uma opinião equivocada a seu respeito. Somente aqueles que não captaram ou não apreciam o caráter alegórico da ficção de Saramago podem dizer que suas personagens são esquemáticas, carentes de espessura psicológica, ou que suas histórias são inverossímeis. Tal alegação revela uma total incompreensão de seu projeto romanesco. Saramago não é um escritor analítico, um esmiuçador de idéias ou de estados de alma (embora prove, em muitos momentos, que sabe fazer isso). As histórias que ele narra não valem por elas mesmas, mas por seu sentido alegórico. E é justamente a generalização alegórica que lhe garante a recepção universal desde sempre concedida aos aedos, aos fabulistas, aos contadores de "estórias".

O que ele busca é mais geral e concreto. Geral, como alegoria moderna, isto é, aquela que nasce da história e a ela remete. E concreto em vários sentidos. Concreto primeiramente pela capacidade que ele tem de dar concretude aos objetos e aos seres, o que confere a seu texto um permanente apelo sensual. Concreto também porque ele sente e trabalha a palavra em sua materialidade fônica, como poeta que é: "Penso hoje que os escritores têm andado com demasiada pressa: problematizam micrometricamente sentimentos sem antes terem dado uma simples volta de dicionário às palavras" ("Manual de Pintura e Caligrafia").

A obra toda de Saramago se esteia num projeto ético e político, sem se tornar doutrinária e sem deixar de ser prioritariamente estética. "Dificílimo ato é o de escrever, responsabilidade das maiores", diz ele. Saramago é um homem politicamente engajado, com opiniões firmes, que podemos ou não compartilhar. Mas sua obra literária não é uma obra de mensagem explícita e fechada; é sempre uma busca e uma proposta de sentido, e não uma imposição do mesmo. Sua enunciação escapa à tentação do dogmatismo pela presença constante da ironia, do humor, da ternura e sobretudo pela prudência de quem conhece a especificidade de sua arte. As questões que ele levanta, embora sempre convidando à reflexão sobre a realidade atual, ultrapassam essa contingência imediata; são questões que os historiadores chamariam "de longa duração": o poder, a opressão do indivíduo na sociedade, a dignidade fundamental do ser humano, a relação com o outro, a força do sonho e da arte.

Dessa proposta geral decorre o aparente paradoxo de um escritor comunista que não é realista, e nem mesmo acredita no realismo de representação: "Às vezes, contamos certo, mas o acerto é muito maior quando inventamos. A invenção não pode ser confrontada com a realidade, logo, tem mais probabilidade se ser exacta"; "toda a verdade é ficção" ("Manual de Pintura e Caligrafia"). Seria portanto mais correto dizer que Saramago é um comunista escritor do que um escritor comunista, nuança que ele mesmo esclarece: "Eu não considero que o meu partido seja competente em matéria literária e, em geral, artística" ("Jornal de Letras", 1989). Saramago também não é, como pensam alguns, um marxista jurássico aferrado às palavras de ordem de seu partido: "O modelo falhou, não tenho dúvidas. É mais do que óbvio. Poderemos dar-lhe os nomes que quisermos, socialismo científico, socialismo real, mas os factos estão aí, a dizê-lo e a prová-lo claramente: o modelo real falhou. Este era um dos modelos possíveis. Mas penso que o ideal não morre. Sobreviverá, disso tenho certeza, e haverá tempo para pensar nele noutra escala, noutras condições" ("Ler", 1991).

A descrença na representação realista e o caráter alegórico de sua ficção levam frequentemente Saramago ao domínio do fantástico. Desde o "Memorial", todas as suas histórias contêm intervenções do extraordinário ou do maravilhoso. No uso do fantástico, o escritor também tem evoluído, no sentido de uma sutileza maior. Nos últimos romances não há mais bruxarias espetaculares (como no "Memorial"), cães com fio de lã azul na boca (como em "Jangada de Pedra") --traços que o aproximavam do realismo maravilhoso latino-americano, comparação que ele agora rejeita--, mas uma passagem quase imperceptível do real a um irreal simbólico, no mais das vezes sombrio, como a cidade em que quase todos ficaram cegos ou como a Conservatória Geral de "Todos os Nomes", ao mesmo tempo banal repartição pública e assombroso labirinto sem fim nem fundo, mais para Kafka do que para Garcia Marquez. Nesse sentido, o escritor também se despojou de certas facilidades a que antes se deixava levar. Enfim, Saramago está cada dia melhor.

O fundamento crítico e ético da obra de Saramago está presente desde as primeiras obras e ele pode ser subsumido na expressão "levantar do chão". Numa belíssima passagem de "Manual de Pintura e Caligrafia", o narrador-personagem reflete sobre a morte, e rejeita a afirmação de Raul Brandão de que "é preciso matar segunda vez os mortos". Sua posição é oposta: "Despeço-me dos mortos, mas não para os esquecer. Esquecê-los, creio, seria o primeiro sinal de morte minha. Além disso, após esta viagem de escrever tantas páginas, fez-se-me a convicção de que devemos levantar do chão os nossos mortos, afastar dos seus rostos, agora só ossos e cavidades vazias, a terra solta, e recomeçar a aprender a fraternidade por aí". O romance seguinte seria "Levantado do Chão", em que ele narra a luta dos "sem-terra" alentejanos, ressuscitando aqueles homens cujo sofrimento teve pouca possibilidade de se exprimir e de se fazer ouvir. "Como se eu tivesse de agarrar naquela gente que foram os meus avós, os meus pais e os meus tios, essa gente toda, analfabetos e ignorantes, e tivesse de escrever um livro" (Carlos Reis, "Diálogos com José Saramago", no prelo). No "Memorial", ele recua a um tempo ainda mais remoto, para trazer de novo à vida, dar um nome e uma biografia às centenas de atores anônimos da construção do Convento de Mafra e às vítimas obscuras da Inquisição. A questão do nome próprio, direito humano fundamental, é uma constante em sua obra.

Se Saramago escreve romances históricos, nunca o faz para diversão ou evasão temporal do leitor.

Ele não busca simplesmente transportar-se e transportar o leitor ao passado, por uma reconstituição de época pretendendo à objetividade, ao realismo ou ao pitoresco. Embora seja mestre em dar vida e ação aos dados documentais, em reconstituir ambientes e personagens de outras épocas, também é mestre na desconstrução de todo realismo, pelos voluntários anacronismos, pelas bruscas mudanças de enunciador e de tom, pela mistura de registros altos e baixos, pela introdução de eventos fantásticos na trama oficial ou cotidiana, pela interferência irônica do narrador.

Se bem observarmos, veremos que todos os romances de Saramago são um "não" oposto à infelicidade histórica do homem. O ato rebelde de Raimundo Silva, em "História do Cerco de Lisboa" (1989) --acrescentar a palavra "não" a um relato histórico--, é emblemático da atitude do escritor cada vez que este narra histórias da História. No "Memorial do Convento", a rebeldia das personagens é um "não" oposto à opressão monárquica e religiosa. "A Jangada de Pedra" pode ser lido como um "não" à Comunidade Européia. "O Evangelho segundo Jesus Cristo", um "não" as religiões que culpabilizam e sacrificam os homens. E assim por diante.

O "não" proferido por Saramago no "Memorial do Convento" está implícito em vários aspectos do romance. Esse "não" está, primeiramente, no estilo em que ele reescreve seu "memorial". Os fatos históricos, atestados em documentos, não podem ser negados. Mas a maneira de os narrar pode modificar o seu sentido. Assim, desde o início, o relato histórico vai sendo ironizado e satirizado pela inclusão de dados indignos de uma crônica real --a cama "recozendo a cheiros e secreções", a rainha "enroscada como toupeira", os incômodos percevejos etc., e pelo estilo pouco canônico do cronista --"Agora só falta colocar a cúpula de Miguel Ângelo "...". Que espere. Por enquanto, ainda el-rei está a preparar-se para a noite". O "não" aparece também no nível da ação. As personagens principais, que não são o rei e a rainha, mas os plebeus Blimunda e Baltasar, dirão "não", por seus atos, à ortodoxia religiosa, a todas as convenções hipócritas, a todas as ordens injustas e opressivas. O mesmo farão, em maior ou menor escala, as outras personagens positivas do romance. Como sempre acontece aos que dizem "não" à doxa dominante, essas personagens passam, aos olhos da sociedade, por loucas, e aos olhos do poder, por perigosas, devendo então ser eliminadas.

Já em "História do Cerco de Lisboa", a negação está no âmago da trama e no próprio enunciado. Ao colocar a palavra "não" num discurso histórico, a personagem altera tanto a História como sua vida pessoal. Introduzir um "não" num discurso histórico é, além de uma falsificação do texto, uma maneira de contrariar a própria natureza assertiva desse tipo de discurso. A intriga da "História do Cerco de Lisboa" alegoriza a posição do próprio romancista com relação à história de Portugal e à história dos homens, em geral. Saramago, como Raimundo Silva, não gosta dessa história na forma em que ela ocorreu, ou como os documentos atestam que ela ocorreu. A tentação de corrigi-la é grande; mas também é total a consciência de que não se podem alterar os fatos passados. A modificação introduzida pelo revisor revela-se, na prática da reescritura, como difícil; e, afinal, ele tem de contentar-se com uma mudança mínima. Porque o fato presente de que a Lisboa em que ele escreve a nova versão não é mais uma cidade moura impede uma alteração total. Assim, o revisor limita-se a introduzir uma pequena mudança: dizer que alguns cruzados não ajudaram os portugueses, fato que, mesmo hipotético, em nada muda o resultado final que é o massacre e a expulsão dos mouros. A única alteração obtida por Raimundo Silva não é a da história passada de Portugal, mas a de sua própria história pessoal, que está no presente e tem futuro. O gesto temerário de escrever "não" tem efeitos na vida do revisor, e não no texto do historiador traído, onde fica como um mero erro lógico, em contradição com o resto do discurso, e de onde pode ser deletado facilmente por um outro revisor. E a grande alteração obtida por Saramago está na maneira de ler e refletir sobre a "História Acreditada".

Embora, neste romance, a negação esteja na própria trama e no enunciado, aí também ressoa, como no "Memorial", o "não" geral da enunciação. É nítida a simpatia do narrador, e do próprio Raimundo, narrador em segundo (ou terceiro) grau, pelos mouros sitiados ("pobres deles, feridos e desgraçados"), e o repúdio pelos atos dos sitiantes. Esse repúdio se manifesta de modo muito sutil; por exemplo, na ironia que resulta de juntar, no discurso do Rei, as razões de ordem divina e civilizacional com a proclamação de atos de barbárie: "Foi toda a população passada à espada, homens, mulheres e meninos, sem diferença de idades e terem ou não armas na mão "..." mas ainda não falei doutras melhores razões, que é contarmos nós, portugueses, com a ajuda de Nosso Senhor Jesus Cristo, cala-te, Afonso". Fica claro, entretanto, que os sitiados têm a simpatia do narrador, não por serem mouros, mas por serem, naquele momento, as vítimas.

Em "O Evangelho segundo Jesus Cristo", Saramago diz "não" ao nosso mito fundador judeu-cristão. Mais do que isso, diz "não" a um Deus que sacrifica seu próprio filho e deixa que, em seu nome, corram rios de sangue ao longo dos séculos. Esse "não", como era de esperar, foi o que custou mais caro ao escritor, que sofreu toda espécie de recriminação e de censura por causa dele. Como no caso do revisor do "Cerco de Lisboa", o "não" do narrador não altera o fim da história. No nível da narrativa, o próprio Jesus tenta dizer "não" à sua morte anunciada e ao futuro cruel dos mártires, que de sua morte decorreria: "Não quero esta glória", diz ele a Deus; "Mas eu quero esse poder", responde-lhe aquele. A assertiva de Deus é mais forte do que a negativa de Jesus. O "não" pode não ser vitorioso no nível da narrativa, mas ele se impõe no nível da enunciação, alterando a significação da história e induzindo o leitor a encará-la de modo crítico.

O "não" de "O Ano da Morte de Ricardo Reis" e de "Ensaio sobre a Cegueira", embora proferido pelo romancista contra os mesmos poderes opressores, é mais complexo no que diz respeito às personagens e suas ações. Nos dois romances, as personagens principais assumem uma postura de de negação, no sentido psicanalítico do termo. Ricardo Reis recusa-se a participar da história, pretendendo manter-se apenas como observador da mesma. "Não agir" é sua divisa, como a de Bernardo Soares, autor de uma das epígrafes do romance. Sua atitude é a da denegação do real: "O que eu não quero saber, não existe". Dessa denegação, resulta uma funesta asserção negativa: "Não somos nada", que aproxima perigosamente Ricardo Reis do slogan da juventude nazista.

"Ensaio sobre a Cegueira" não é um romance histórico, mas pode ser lido como um romance de antecipação, que relata um momento presente-futuro da humanidade. As personagens desse livro cegam porque denegam a própria cegueira; porque, como Ricardo Reis, não querem ver o que ocorre à sua volta, ou fazem de conta que não vêem. Ressoa, em toda a parábola que é essa narrativa, a moral contida no ditado popular: "O pior cego é o que não quer ver". O final do romance esclarece: "Por que foi que cegámos, Não sei, talvez um dia se chegue a conhecer a razão, Queres que te diga o que penso, Diz, Penso que não cegámos, penso que estamos cegos, Cegos que vêem, Cegos que, vendo, não vêem". Tanto no caso de Ricardo Reis como no dos cegos, a denegação é fatal, porque aquilo que faz a infelicidade humana deve ser recusado, e não apenas denegado como não existente. O enunciador dos dois romances diz "não" ao "não agir" e ao "não ver" de suas personagens. A negação de uma negação, como se sabe, produz uma afirmação. A afirmação (implícita) de Saramago é: agir é inevitável e necessário; ver é preciso. Se toda a obra de Saramago é um dizer "não" à infelicidade dos homens, ela é um dizer "sim" ao seu contrário. Embora em suas narrativas, como na vida, a infelicidade seja a mais constante, em todas elas são indicadas as possibilidades de a ela escapar: pelo amor, pela solidariedade, pela arte, pela recusa de pactuar com o status quo.

Há, em Saramago, um permanente desejo de que a fatalidade brutal da história se detenha. É pelo "não" contraposto aos fatos históricos que o romancista deixa de ser historiador, opondo a liberdade da fabulação à prisão da história, escapando da lógica exclusiva do "sim" ou "não" que preside aos fatos passados e documentados. Os próprios documentos históricos, tantas vezes contraditórios entre si, abrem brechas por onde a fabulação pode esgueirar-se. Essas contradições, que tanto embaraço causam aos historiadores, obrigando-os a lembrarem-se de que a história é um discurso, são, para o ficcionista, um convite ao exercício da imaginação. No real, as coisas estão submetidas à lógica mutuamente exclusiva do "sim" ou "não". Na literatura, que é apenas linguagem, mas linguagem com poder infinito de significância, as coisas podem ser e não ser, ao mesmo tempo. Diferentemente das obras históricas, as ficções permitem "um infinito Talvez", que não deixa "pedra sobre pedra nem facto sobre facto". As ficções "fazem-se todas com uma continuada dúvida" ("História do Cerco de Lisboa"). Elas escapam, assim, ao determinismo da história.

O escritor quer recuperar o passado: "Todo romance é isso, desespero, intento frustrado de que o passado não seja coisa definitivamente perdida" ("História do Cerco de Lisboa"). A diferença, porém, está no fato de que o escritor tem a permissão de alterar o passado e, com isso, sugerir que o presente e o futuro podem ser outros. O passado não pode ser alterado pelo presente, mas o futuro sim. Ao falar do passado, é sempre no presente que Saramago está pensando. Daí a função dos paralelismos, espelhismos e anacronismos que, em sua obra, não são meros jogos narrativos, mas aproximações para fazer pensar, projeção e projeto. Nos romances de Saramago, a evocação do passado, como a visão do presente, abre-se para o futuro. Um futuro que é tanto o destino real dos homens como aquele, essencial para que este não seja mero destino, isto é, fatalidade cega: o da preservação de seus valores, dentre os quais a arte.

À luz desse projeto humanista de Saramago, a censura que lhe têm oposto os católicos tradicionalistas aparece como a mais absurda. Cegados pelos dogmas, eles não vêem o quanto o humanismo de Saramago está próximo do ideal cristão de justiça e solidariedade. Também não atentam para o fato de que a existência ou não de Deus, assim como a questão da redenção dos homens, mortos ou vivos, são inquietações permanentes do escritor, fazendo dele o mais crente dos ateus. "Para ser ateu como eu sou, deve ser preciso um alto grau de religiosidade" ("Ler", 1991).

Saramago não é um otimista; ele é demasiadamente lúcido para o ser. "Ensaio sobre a Cegueira" pode mesmo parecer, à primeira vista, um agravamento de seu pessimismo. Mas o próprio fato de continuar a dizer "não" à desgraça humana, nesse livro como nos outros, mostra que pode haver uma saída: "Enquanto puder, disse a rapariga dos óculos escuros, manterei a esperança, a esperança de vir a encontrar meus pais, a esperança de que a mãe desse rapaz apareça, Esqueceste-te de falar da esperança de todos, Qual, A de recuperar a visão". O ceticismo que Saramago tem manifestado, em conferências e entrevistas, com relação à possibilidade de a literatura melhorar os homens e influir na história, é felizmente desmentido em suas obras, por suas personagens e pela própria beleza de seus textos, provas, como toda arte, de que o homem é capaz de transcender a estupidez do real.

O fato de esta obra alcançar um grande público (e, no Brasil, um grande público jovem) demonstra o quanto os leitores estão carentes de histórias e de sentido, e não de qualquer historinha de entretenimento, ou de qualquer mensagem piegas ou esotérica. "São os grandes sentimentos, e não os sentimentalismos, que nos exaltam, que nos fazem acreditar", disse o romancista à Folha em 1996. Saramago sabe muito bem para que serve a literatura: "Se a literatura nesta terra ainda serve para alguma coisa, isto é, se for mais do que alguns estarem a escrever para alguns estarem ainda a ler, torna-se urgente recuperá-la, já que a nossa sociedade corre o risco, devido aos audiovisuais, de emudecer, ou seja, de haver cada vez mais uma minoria com grande capacidade para falar e uma maioria crescente limitada a ouvir, não entendendo sequer muito bem aquilo que escuta" ("Jornal de Letras", 1983).

O Nobel de Saramago não reconforta apenas nossos corações lusófonos. Reconforta a todos que ainda acreditam na necessidade da grande literatura.

Leyla Perrone-Moisés é coordenadora de pesquisas no Instituto de Estudos Avançados da USP e autora de "A Falência da Crítica" (Perspectiva) e "Altas Literaturas" (Companhia das Letras).

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