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4. História do Cerco de Lisboa - Textos publicados na Folha

Saramago segundo o teatro

(publicado em 10/11/2001)

VALMIR SANTOS
Free-lance para a Folha

O mês é propício. Na próxima semana, José Saramago completa 79 anos. Foi em novembro de 91 que lançou "O Evangelho Segundo Jesus Cristo", livro com o qual colheu louros e pendengas, estas sobretudo por conta da ala conservadora da Igreja Católica.

Ao abordar a relação do homem com o sagrado, o escritor reinterpretou um dos cânones do Ocidente e criou espaço, por exemplo, para Jesus contestar seu papel diante de Deus. Em outra passagem, Deus negocia com o Diabo sobre o mal.

No Brasil, o romance foi adaptado para teatro, por Maria Adelaide Amaral, e ganha montagem homônima a partir do dia 24, no Sesc Vila Mariana (SP), sob direção de José Possi Neto.

Atuam, entre outros, Eriberto Leão (Jesus), Walderez de Barros (Maria), Paulo Goulart (Deus), Celso Frateschi (Pastor), Maria Fernanda Cândido (Maria de Magdala) e Júlia Catelli (Zelomi).

Saramago soma quatro peças de sua lavra, mas se esquiva do ofício de dramaturgo. Em entrevista, por fax, ele se diz curioso sobre a montagem brasileira (inédita no mundo) e pede que sejam preservados o debate de idéias e os "valores de uma dialéctica de confrontação", sempre com a ortografia de seu Portugal.



Folha - Publicado há dez anos, "O Evangelho Segundo Jesus Cristo" suscitou polêmicas ao reler figuras bíblicas como Deus, Jesus, Maria e José à luz da condição humana. Permitiu diálogo e reflexão entre as crenças, colocando a literatura acima dos preconceitos políticos e religiosos. O romance pode ser concebido como libelo à tolerância?

José Saramago - Tenho dúvidas, muitas e justificadas, sobre se "O Evangelho Segundo Jesus Cristo" levou a um diálogo e a uma reflexão sobre as crenças. Os católicos que leram o romance com espírito aberto não foram muitos, e os outros foram infelizmente demasiados, não, claro está, porque eu não lhes reconheça e respeite o direito a defenderem aquilo em que acreditam, mas porque deram mostras de uma intolerância surpreendente em quem, ao que parece, pratica uma religião que se diz ser de amor e perdão.

Folha - Qual a expectativa do sr. quanto à adaptação do romance para o palco?

Saramago - Uma enorme curiosidade. Assisti em São Paulo [em 98, na Folha] a uma leitura preparatória que me agradou muito e estou certo de que o espetáculo confirmará amplamente essa primeira impressão.

Folha - O teatro pode ser um terreno fértil para o seu romance? O diretor José Possi Neto afirma o desejo de "materializar a teatralidade que o livro tem".

Saramago - Não há teatro sem conflito e os conflitos não faltam no meu "Evangelho". A diferença está no facto de o romance tender à análise, ao passo que o teatro procura de preferência a síntese. O texto romanesco expande-se, o texto teatral concentra-se.

Folha - Possi Neto afirma ainda que a estrutura do livro lembra a da tragédia grega, como na aproximação de Cristo com a figura de Édipo, na busca da identidade e da interpretação do destino. O sr. concorda com essa generosidade teatral do texto, que também lida com mitos, arquétipos e, numa das passagens, alude até a importância da projeção da voz, das principais ferramentas do ator?

Saramago - É uma analogia possível, que envolve não apenas a Jesus (então ainda não era Cristo), mas também a José. Em todo o caso, defendamo-nos de querer encontrar no "Evangelho" uma transposição mais ou menos literal do drama edípico. No fundo do seu espírito, Édipo sabe-se condenado, ao passo que, mesmo no seu último extremo, Jesus não se rende. Não significam outra coisa as palavras finais que profere e que têm sido consideradas blasfemas pela Igreja: "Homens, perdoai-lhe, porque ele não sabe o que fez".

Folha - Na adaptação de Maria Adelaide Amaral, a partir de esboço de Possi Neto, o personagem José, que centraliza a questão da culpa, não está presente em cena. O que lhe parece?

Saramago - Espero que o facto de José não estar presente em cena não signifique que esteja ausente do drama. José é um personagem central, tão fundamental quanto Jesus.

Folha - O sr. acompanhou a adaptação?

Saramago - Não acompanhei. O meu único pedido foi que a adaptação não olvidasse que no meu livro são debatidas idéias e que os interesses de espectáculo não se deveriam sobrepor aos valores de uma dialéctica de confrontação.

Folha - O sr. sabia que "O Conto da Ilha Desconhecida" ganhou uma adaptação para espetáculo infanto-juvenil em São Paulo, em cartaz no Teatro Brasileiro de Comédia, um dos palcos mais tradicionais da cidade? Qual a sensação de ser "traduzido" para crianças?

Saramago - A meu ver, uma das opiniões erradas que circulam sobre as crianças é que só lhes convém o que designamos por literatura infantil. A criança deveria ler livros que estivessem acima da sua compreensão imediata. "O Conto da Ilha Desconhecida" está nesse caso e, pelos vistos, o resultado não foi mau.

Folha - Como foi a experiência de escrever "In Nomine Dei" [sobre os anabatistas, seita protestante do século 16 que rejeita o batismo das crianças e rebatiza todos os seus adeptos] para o Teatro de Ópera de Münster?

Saramago - Como é natural, o meu conhecimento do assunto era muito limitado, de modo que tive de fazer um trabalho de investigação histórica bastante minucioso. No essencial, creio não haver cometido erros.

Folha - Em certa ocasião, o sr. declarou que a dramaturgia é uma atividade paralela. Quando ela se manifesta?

Saramago - Na realidade, não me considero um dramaturgo. As quatro peças de que sou autor nasceram todas por solicitações exteriores.

Folha - O sr. reconhece influência de autores sobre o seu teatro?

Saramago - Sou a pessoa menos indicada para identificar as influências que se encontrem no meu teatro.

Folha - O que lhe atrai como dramaturgo na arte da representação?

Saramago - Uma vez que não sou dramaturgo, é como simples espectador que a arte da representação me atrai. E essa é a melhor atracção que há.

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