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6. A Linha de Sombra - Textos publicados na Folha

Condenação do amor

(publicado em 06/11/1999)

BERNARDO CARVALHO
colunista da Folha

As aparências costumam enganar nos livros de Joseph Conrad (1857-1924). Por trás das aventuras rocambolescas nos mares do sul, boa parte das obras-primas do escritor inglês de origem polonesa contam no fundo uma história de amor impossível. "A Loucura do Almayer" (1895), primeiro romance do autor, inédito no Brasil, não foge à regra, chegando a lembrar o enredo de uma ópera romântica.

Uma das grandes inovações de Conrad foi justamente introduzir, sob a aparência do simples romance de aventuras, uma dimensão psicológica profunda entre os personagens, de forma a dar conta da tragédia existencial da condição humana.

A visão de Conrad é niilista. Em "A Loucura do Almayer", por exemplo, o estado psíquico a que se refere o título é consequência de um processo que tem início pela ambição de um homem (assim como no clássico "Coração das Trevas", de 1902, em que Francis Ford Coppola se baseou para criar seu "Apocalypse Now"), pela ilusão de "vencer na vida" (para o autor, a frase é uma contradição em termos) e o seu inevitável fracasso. A busca e a luta pela fortuna só podem ser pagas pela tragédia da desilusão.

A derrocada, que acontece aparentemente pela traição de homens e de uma realidade em que não se pode confiar, é inevitável porque o próprio real é traição. Não há possibilidade de realização de sonho individual, que já é loucura desde o início, por ser uma tentativa de ignorar, superar ou vencer o real. O sonho de fortuna ou de conquista é sempre uma ilusão. E, para usar um clichê dos mais surrados, a vida se resume, segundo Conrad, a uma "trapaça da sorte". O real é um processo de desencanto.

É essa condição inóspita aos sonhos de fortuna individuais, expressos na contradição da salvação pela conquista, típica do colonizador que massacra sob o pretexto de "civilizar", que faz dos laços de amor (a amizade em "Lord Jim" e "O Companheiro Secreto"; o amor paterno em "A Loucura do Almayer") a última ilusão de um porto seguro diante de tanta contrariedade.

Mas ao contrário dos textos mais célebres de Conrad, em que o ponto de vista é marcadamente masculino e o amor traduzido, sob a égide da fibra e da coragem, pela amizade entre semelhantes (ele era "um dos nossos", escreve o autor ao final enigmático do prefácio de "Lord Jim"), "A Loucura de Almayer" parece ser mais um "livro de mulheres", em que as mulheres são as principais protagonistas e o mundo é visto por um viés feminino, por uma "sensibilidade feminina".

"O que você sabe da cólera e do amor dos homens? Você já observou o sono de homens cansados de matar? Já sentiu em volta de seu corpo um braço forte capaz de enterrar até o cabo um punhal num coração que pulsa? Ah! Você é uma mulher branca e deve rezar para um deus-mulher", diz a senhora Almayer a sua filha, já perto do final do romance, aconselhando-a a tomar a decisão que fará despencar por fim as últimas esperanças do pai.

Qual é a história? Em seu sonho de fortuna, em sua vã ambição de escapar ao real ("eu venho tentando sair deste lugar infernal há 20 anos e não consigo"), o holandês Almayer aceita, a despeito de seus preconceitos raciais, a oferta que lhe faz seu patrão inglês: casar-se com uma mulher malaia que o velho havia adotado e criado depois de tê-la capturado num barco de piratas.

Casado, Almayer vai ocupar o posto de representante comercial do inglês no interior de Bornéo, cercado de bandidos e inimigos. Seu único consolo é a filha, para quem ele acaba transferindo todas as ilusões, almejando libertá-la daquela realidade e levá-la para a Europa, para a civilização, onde acredita ser possível superar as diferenças raciais (a filha é mestiça), nem que seja pelo poder do ouro que ainda sonha em conquistar nas profundezas desse inferno, graças a indicações deixadas pelo velho inglês antes de voltar para a Inglaterra.

O inferno tropical passa a ser a alegoria de uma prisão que é a própria vida, um território real e particular usado como cenário imaginário para uma parábola universal da condição humana. Aqueles que Almayer chama de selvagens não são menos bárbaros que o branco colonizador. Estão todos no mesmo barco. Escapar à miséria do mundo é uma impossibilidade.

E nem mais o esquecimento é solução para tentar superar a frustração. Ele não passa de mais uma ilusão. Quando Almayer, por fim resignado diante do real que tentou vencer inutilmente, diz à filha que nunca a perdoará, ela responde: "O senhor me ama (...) e nunca vai me esquecer". Na sucessão de desilusões que constituíram a sua vida, Almayer descobre nessa última frase a mais cruel de todas: que até o amor, em que tinha ancorado sua última esperança, é condenação.

Avaliação: Ótimo

Livro: A Loucura do Almayer
Autor: Joseph Conrad
Tradução: Julieta Cupertino
Lançamento: Editora Revan
Quanto: R$ 20 (196 págs.)

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Lançado: 21/12


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