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6. A Linha de Sombra - Textos publicados na Folha

Naufrágio atroz de uma consciência

(publicado em 03/12/2000)

JOSÉ MARIA CANÇADO
especial para a Folha

O Fim das Forças" ("The End of the Tether", expressão que significa "o fim da corda" e para a qual a tradutora encontrou essa boa solução em português, dando-lhe uma "esticada" moral e agônica), embora não seja das novelas mais conhecidas de Joseph Conrad (1857-1924), é uma obra-prima. Saiu em 1902, junto com duas outras obras-primas: "Juventude" e "Coração das Trevas" (Ed. L&PM). Conrad tinha 45 anos e já era o autor de "Lord Jim", de 1900. Surgida nos albores do século 20, sua obra, de dentro de uma espuma marítima purificadora e da adesão cavalheiresca a um eixo estóico de dever, parece chegar no final dos Novecentos como a sorte do próprio Jim --"velada como uma noiva do Oriente".

Carta de nobreza

Seja o que for que o tenha preparado para isso, a infância exilada depois do fracasso da rebelião polonesa de 1863, o ingresso na marinha mercante da Inglaterra e na própria língua literária inglesa, toda essa decorosa e indormida circulação de estrangeiro, Conrad viveu a sua vida e criou os seus personagens como se estes levassem uma ampla carta de nobreza que não haveria como resgatar em ponto nenhum do futuro.

O capitão Whalley é um desses. É um sobrevivente das rotas marítimas do Oriente e das pequenas companhias de navegação que fervilhavam nos mares da região até o final da primeira metade do século 19, quando começam a declinar com a trustização crescente do mar, das linhas e do comércio, trazida pelas grandes empresa, sobretudo alemãs.

Viúvo, tendo perdido a sua "Fair Maid", a enfunada e quase nupcial embarcação que foi sua casa durante tanto tempo, ele não tem mais nada de seu senão um maço apertado de 500 libras, moeda de troca com que deve comprar em terra todos os dias que lhe restam pela frente.

É o pecúlio que tem e que talvez lhe permita encontrar ainda alguma circulação e algum pouso na faixa muito estreita de terra --isso não tivesse ele, no seu coração anti-Lear e na paixão da paternidade, destinado o dinheiro, para quando morresse, à sua única filha, que mora na Austrália com o marido inválido, numa casa com "uma sala de jantar em mau estado, em que durante todo o ano pairava um leve odor de comida fria" (essa nota sensorial, tristinha, um pouco enjoativa, no registro quase inextinguivelmente alto da prosa de Conrad, revela a feição absoluta, exigente, da paixão da paternidade).

Clangor expressionista

A única disposição possível, que permita manter a quantia intocada até a morte do capitão Whalley, para ser entregue então à filha, e garanta também ao velho marinheiro um teto sem que para tanto tenha que pagar alguma coisa, é associar-se ao proprietário de um vapor decadente, que necessita tanto de capital para conduzir aquilo nas rotas do sudeste da Ásia quanto de um comandante.

As entranhas do "Sofala", com o clangor quase expressionista de alavancas, ferros, caldeiras, a tripulação de malaios e chineses e a emaciada vilania do proprietário, são ao mesmo tempo o antiinvestimento de Whalley (não mais do que um cofre onde pode enfiar o maço de libras da filha até a sua morte) e a sua acomodação asilar.

As melhores páginas de Conrad são sempre diagramas atrozes da consciência moral, cujas linhas mergulham cada vez mais no próprio coração do horror: Whalley percebe que está perdendo a visão. É o imperativo absoluto, como a aproximação cada vez mais perigosa do litoral que ele não divisa mais, e o sinal para saltar fora do arranjo e da sua vida, suicidando-se.

Aturdimento

O suicídio do absurdamente decoroso e cavalheiresco Whalley não tem nada de demissionário. Ele não é daqueles dos quais se pode dizer que "um velho são trapos sobre um bastão". Era toda a inextinguível força do que viveu, do que amou, do que viu, e é a isso que, por ampla adesão a essa própria força, ele deve por fim.

Ao surgirem numa espécie de momento zero do século 20, que se mostrava então também enfunado e propiciatório, os personagens de Conrad (Whalley, Jim, o Heyst de "Victory", Marlow) pareciam trazer, em volta da sua condição de seres magníficos, o aturdimento de algumas perdas e transformações recentes na circulação humana nos oceanos e no mundo, as quais tinham lhes deslocado um pouco para um não-lugar.

Um século depois, continuam ali, mas esse "entre mundos" parece hoje muito mais profundo.

José Maria Cançado é jornalista, autor de "Os Sapatos de Orfeu" (Scritta), biografia de Carlos Drummond de Andrade.

O Fim das Forças
192 págs., R$ 25,00
de Joseph Conrad. Trad. Julieta Cupertino. Ed. Revan (av. Paulo de Frontin, 163, CEP 20260-010, RJ, tel. 0/xx/21/502-7495).

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