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6. A Linha de Sombra - Textos publicados na Folha

O prisioneiro do mar

(publicado em 09/12/2000)

FÁBIO DE SOUZA ANDRADE
especial para a Folha

Em uma passagem de "O Negro do Narciso", novela que Joseph Conrad publicou em 1897, o narrador focaliza a absorção com que um marinheiro, Singleton, de todos a bordo o mais velho e experiente, se entrega à leitura, indiferente à algazarra geral de um convés agitado pela iminência da partida. Pergunta-se sobre que fascínio o livro escolhido poderia exercer sobre a imaginação rude daquelas "crianças crescidas", "eternos prisioneiros do mar".

A imagem traduz em negativo a situação dos próprios leitores de Conrad, a dos muitos que fizeram a sua popularidade imediata, a nossa, dele separados pelo século. Seu interesse é inequívoco, fato indisputável; as razões, menos evidentes, mais contraditórias. Incluem o encanto do romanesco, do deixar-se levar pelo exótico de uma vida completamente outra, que o coloca na esteira de Kipling e Stevenson; a importância propriamente literária de um dos grandes renovadores, ao lado de Henry James, do romance inglês na direção do modernismo; uma visão polêmica e não edulcorante dos estragos promovidos pelo imperialismo europeu.

Estes elementos aparecem com destaque em três lançamentos recentes, traduções que recolocam na ordem do dia o autor de "No Coração das Trevas". Lidos em conjunto, permitem matizar o mito do marinheiro convertido à escrita e a transposição da experiência acumulada numa biografia quase rocambolesca em ficção.

As encruzilhadas e perplexidades que envolvem a obra e a vida do autor de "Lord Jim" são muitas. Era oriundo da pequena nobreza rural, de linhagem de patriotas empenhados em libertar a Polônia sob domínio russo: o pai, Korzeniowski, além de ativista político, simpatizante de idéias revolucionárias, era um literato, tradutor de Shakespeare. Passou a infância acompanhando os pais exilados; ambos morreram antes que completasse 12 anos e Conrad teve sua educação confiada a um tio materno.

Escolheu, ainda adolescente, uma vida no mar, longe das origens. Depois de um breve período como aprendiz de marinheiro em Marselha (França), envolvido com contrabando de armas e círculos de conspiração política, engajou-se na marinha mercante inglesa, seguindo carreira e aposentando-se como capitão.

De "polonês, católico e gentil-homem", como dizia ter se percebido ainda menino, a oficial e súdito do Império Britânico, defensor ardoroso de seus valores, o salto foi grande e, necessariamente, incompleto: restaria sempre em Conrad a marca do "homo duplex", escrevendo numa língua que não era sua de berço, dividido entre duas culturas, suficientemente à margem de ambas para identificar riscos, fraturas e corrosão em cada uma delas.

Sua estréia, com a publicação de "A Loucura do Almayer", aos 38 anos, também é atípica, tardia, para um escritor do seu vulto, mas excepcionalmente madura. Coincide com o abandono do mar. Conrad passou a ter a saúde frágil depois de uma temporada de oito meses no Congo; além disso, recusava-se a acompanhar a modernização nos mares, trocando os veleiros por vapores. No fracasso pessoal de Almayer, um mercador holandês fixado na Malásia, reflete-se o colapso paulatino de uma visão purificada do processo colonial, o esvaziamento da imagem dos europeus portadores da civilização confrontados com atraso indolente à espera de ser redimido.

Como quase sempre em Conrad, o livro de estréia está centrado num episódio estrategicamente escolhido, uma situação única, material para não mais do que um conto, a partir da qual, todas as possibilidades examinadas, surge um romance bem armado. Aqui, trata-se da última cartada de um Almayer envelhecido e desanimado, vida pessoal e financeira em frangalhos, tentando a todo custo reerguer-se e, para tanto, obrigado a engolir seu orgulho de homem branco, por meio de uma aliança firmada a contragosto com um jovem rajá malaio.

Perseguindo a última quimera da fortuna fácil, que lhe permita voltar à Europa e gozar o lado ameno da exploração colonial, branqueando com dinheiro o sangue mestiço da filha, o holandês assiste, impotente, à ascensão nos negócios dos rivais árabes, mais sensíveis e hábeis na composição política com o poder local, e à progressiva atração que a cultura malaia vai exercendo sobre a moça, que, educada à distância e à européia, volta para reencontrar, no convívio com a mãe, o fascínio da tradição local.

Nos escombros dos entrepostos vazios, restam a Almayer a solidão, o ópio e a bebida.

Esse panorama de dissolução final aponta tanto para as raízes realistas de Conrad, admirador de Flaubert e Maupassant, quanto para o precursor do modernismo. Já aparece no romance de estréia a preocupação em deslocar o foco da trama objetiva, beirando o melodrama, para o momento em que o fracasso se ilumina, como impressão reveladora, na consciência individual, muito mais ambígua e atormentada.

Em "O Fim das Forças", um capitão de idade avançada, que encarna à perfeição os valores ingleses que Conrad admirava, vive uma situação em que dois imperativos --manter-se fiel a suas obrigações e alta reputação profissionais no mar e a seu senso de dever familiar-- não são conciliáveis. O sentido de uma verdade unívoca, clara, objetiva, supostamente alcançável por meio da escolha moral individual correta, esmorece sob o peso de um mundo da fragmentação, da contingência que obrigam o capitão Whalley a trair sua natureza para salvar uma filha em apuros financeiros. A consciência dilacerada acaba por não resistir ao contexto hostil; por ironia, é a retidão que leva o capitão a pique.

Crueza realista

Mais do que "A Loucura de Almayer", trata-se aqui de uma história do mar. O que está em questão não é só o enfrentamento do homem com a natureza em sua poderosa impessoalidade nem tampouco apenas as precisas e magníficas descrições impressionistas do mar nas mais variadas situações. Além da chave existencial e metafísica em que o mar aparece, destaca-se também a crueza realista com que Conrad retrata as relações hierárquicas de trabalho que nele se travam.

São também histórias de mar que compõem as lembranças de "O Espelho do Mar", muito pouco confessionais e diretas, mas extremamente reveladoras do impacto formador que a experiência de marinheiro teve sobre o escritor. Os casos de interesse humano, narrados de ponto de vista em que a figura de Conrad aparece muito discreta, são muitos e derivam das condições muito particulares que a convivência forçada com um mesmo grupo, em espaço restrito e por um longo período, produzem. As impressões descontínuas --muito acuradas e cuidadosamente descritas num estilo que busca mais do que a palavra, a metáfora justa-- dão face humana e familiar à geografia dos mares, aos fenômenos meteorológicos, às embarcações, às tripulações e suas rusgas, mesmo para convictos marujos de água doce.

O mesmo aplica-se a "Um Registro Pessoal", em que a opção pelo mar e pela Inglaterra, totalmente estranha no contexto de sua história familiar, é analisada em suas raízes, na infância e adolescência polonesas do autor, num quadro montado a partir de episódios muito concretos: fragmentos do folclore familiar, a traumática recondução ao exílio da mãe agonizante, a figura conservadora e benevolente do tutor. Os dois relatos valem intrinsecamente e como pistas únicas, essenciais para a compreensão de como surgiu, na confluência desses dois exílios voluntários, um autor da estatura de Conrad.

Fábio de Souza Andrade é professor de literatura na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e autor de "O Engenheiro Noturno - A Lírica Final de Jorge de Lima" (Edusp).

O Espelho do Mar & Um Registro Pessoal
Joseph Conrad
Tradução: de Celso M. Paciornik
Iluminuras (Tel. 0/xx/11/3068-9433)
287 págs., R$ 33,00

A Loucura do Almayer
Joseph Conrad
Tradução: Julieta Cupertino
Revan (Tel. 0/xx/21/502-7495)
196 págs., R$ 23,00

O Fim das Forças
Joseph Conrad
Tradução: Julieta Cupertino
Revan
192 págs., R$ 23,00

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