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10. Cem Anos de Solidão - Textos publicados na Folha

A Bíblia de Márquez

(publicado em 23/02/1997)

HAROLD BLOOM
especial para a Folha

Faulkner e Kafka se cruzam nas origens literárias de Gabriel García Márquez. A influência de Faulkner é tão penetrante que, aqui e ali, seus mestres Joyce e Conrad também podem ser escutados, ecoando na prosa de García Márquez, mas quase sempre mediados pelo americano. "O Outono do Patriarca" (1975) parece permeado até em excesso por Faulkner; mas "Cem Anos de Solidão" (1967) absorve a sua influência, como todas as outras, numa fantasmagoria tão poderosa que nenhum leitor pode pôr em dúvida a autoridade de García Márquez.

Talvez neste caso, como sugeriu Reinaldo Arenas, Faulkner tenha sido substituído por Carpentier, e Kafka por Borges, de modo tal que a imaginação de García Márquez vem domesticar a si mesma em sua própria língua. O reino visionário de Macondo é um ato de consciência indígena e hispânica, muito distante de Oxford, Mississipi e do cemitério judeu de Praga. Em seus trabalhos posteriores, García Márquez retornaria a Faulkner e Kafka; mas "Cem Anos de Solidão" é um milagre, que só acontece uma vez, menos um romance do que uma Escritura, a Bíblia de Macondo.

Minha primeira impressão, ao reler o livro, é uma espécie de fadiga estética: a quantidade de vida, em cada página, ultrapassa a nossa capacidade de absorção. Não tenho certeza se essas qualidades tão impactantes da textura do romance constituem, afinal, uma virtude; às vezes me sinto como alguém que foi convidado para um jantar e que se depara com um único, enorme prato de mousse de chocolate. Mas tudo é história no livro, tudo o de concebível e inconcebível acontecendo ao mesmo tempo, da criação ao apocalipse, do nascimento à morte.

Roberto González Echevarría chega a dizer que, em certo sentido, é o leitor quem deve morrer no fim da história, e talvez seja a pura riqueza do texto que acaba nos destruindo. Era Joyce quem falava, não muito a sério, de um leitor ideal, atormentado de insônia, que passaria o resto da vida tentando ler "Finnegans Wake".

"Cem Anos de Solidão", pelo contrário, não exige proezas de interpretação; é um romance que faz por merecer sua popularidade, não apresentando dificuldade alguma de contato. Mesmo assim, o livro acrescenta algo de novo ao domínio da leitura. Seu leitor ideal tem de ser um pouco como seu personagem mais memorável, o coronel Aureliano Buendía, que "chorou no ventre da mãe e já nasceu de olhos abertos". No romance inteiro não há uma única sentença perdida, nenhuma mera transição, e é necessário prestar atenção em tudo, no momento imediato em que se lê. No final, tudo acaba fazendo sentido, pelo menos enquanto mito e metáfora, se não como sentido literário.

Na presença de uma realidade extraordinária, a consciência toma o lugar da imaginação. Essa máxima emersoniana é de Wallace Stevens e bem digna do poeta visionário de "Notas Para uma Ficção Suprema" e "Uma Noite Comum em New Haven". Macondo é uma ficção suprema e por lá não há noite comum. A sátira, a paródia e a fantasia, como gêneros literários, não são mais possíveis num país como os Estados Unidos. "O Pregão do Lote 49", de Thomas Pynchon, deixa de ser uma narrativa fantástica quando se visita o sul da Califórnia, e um passeio pelo metrô de Nova York reduz qualquer exemplo de realismo literário a uma projeção idealizada. Alguns aspectos da existência latino-americana também, de sua parte, transcendem até as invenções de García Márquez. Muito do que é fantástico em "Cem Anos de Solidão" seria fantástico em qualquer lugar; mas boa parte do que parece improvável para um crítico norte-americano pode muito bem ser a representação da realidade.

Emir Monegal enfatizava o caráter único da obra-prima de García Márquez na ficção latino-americana. "Cem Anos de Solidão", para ele, era um romance radicalmente distinto das obras variadas de Julio Cortázar, Carlos Fuentes, Lezama Lima, Mario Vargas Llosa, Miguel Angel Asturias, Manuel Puig e Guillermo Cabrera Infante, entre outros. As afinidades de García Márquez com Borges e Carpentier não lhe passavam despercebidas (nem a Arenas), mas o argumento de Monegal parece ser o de que o colombiano só podia ser visto como representativo de uma escola na medida em que, como os outros, também não era representativo.

No entanto, parece fato consumado agora que, para a maioria dos leitores, é "Cem Anos de Solidão" que primeiro vem à lembrança quando se pensa no romance hispano-americano. Certos livros de Alejo Carpentier talvez sejam ainda mais fortes, mas só Borges chega a dominar a nossa imaginação literária com a mesma força de García Márquez. A tradução inglesa que tenho comigo está na 30ª edição e a popularidade do romance parece assegurada para sempre. Estamos fadados, inevitavelmente, a identificar "Cem Anos de Solidão" com uma cultura inteira, quase como se fosse um novo "Dom Quixote" --coisa que certamente não é. Comparações com Balzac, ou mesmo Faulkner, também não são justas."Cem Anos de Solidão" está mais próximo da estatura de romances como "Fogo Pálido", de Nabokov, ou "Gravity's Rainbow", de Pynchon.

Harold Bloom é autor, entre outros, de "A Angústia da Influência" e "O Cânone Ocidental". O Mais! publica mensalmente seus artigos.

Tradução de Arthur Nestrovski.

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