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10. Cem Anos de Solidão - Textos publicados na Folha

Gabriel García Márquez, peça por peça

(publicado em 06/07/1998)

do "El País"

A arca do universo de Gabriel García Márquez se consolida. A Universidade de Zaragoza, na Espanha, acaba de publicar as memórias nas quais 85 especialistas do mundo todo tratam de desvendar o mundo literário criado pelo escritor colombiano, sob o título "Quinhentos Anos de Solidão".

Trata-se da recopilação das conferências e mesas-redondas do congresso sobre o ganhador do Prêmio Nobel de Literatura colombiano realizado pela universidade em 1992, dentro da celebração do quinto centenário do descobrimento da América.

Os estudos de quase uma centena de especialistas da obra de García Márquez permitem extrair os elementos que configuram aquele universo literário.

Ainda que o tema central do seminário tenha sido "Cem Anos de Solidão", pois o romance também completava 25 anos, essa legião de dissecadores da literatura não esqueceu nenhuma das obras de García Márquez.

Todos eles perceberam em algum momento o palpite de Deus e da criação na obra de "Gabo" --como é carinhosamente chamado--, que em uma ocasião deixou aflorar na boca da viúva de Montiel, no conto de mesmo nome: "O mundo está malfeito".

"Os que a visitaram por esses dias tiveram motivos para pensar que tinha perdido o juízo. Mas nunca foi tão lúcida. Desde antes de a matança política começar, ela passava as lúgubres manhãs de outubro frente à janela de seu quarto, compadecendo-se dos mortos e pensando que, se Deus não tivesse descansado no domingo, teria tido tempo para terminar o mundo."

Outros achados da arca do mundo de García Márquez explorados pelos especialistas são:

A INSPIRAÇÃO

"Depois de ler 'A Metamorfose', gritou fascinado: 'Caralho! Mas era assim que minha avó falava'. Referia-se à mesma cara-de-pau com que sua avó Tranquilina Iguarán fazia parecer verdadeiras as história que contava."

Dasso Saldívar, autor de "Viagem à Semente", biografia de García Márquez

O TERRITÓRIO

"É o conto-chave do que será a novelística de Gabo: vemos elementos tão importantes como a construção de uma paisagem (já aparece Macondo) que influi na percepção dos personagens. Além disso, o tempo atmosférico monótono, úmido, apocalíptico, viscoso, faz com que o outro tempo, o cronológico, apareça como cíclico, anulado."

José Julio Angosto Martínez, sobre "Monólogo de Isabel Vendo Chover em Macondo"

A TERRA PROMETIDA

"Os limites de Macondo no mapa atual das representações literárias não são do tipo ocidental, pois Macondo tem limites nômades."

Carlos Rincón, da Universidade Livre de Berlim

A NATUREZA

"A natureza termina engolindo a paisagem formada por Macondo e a casa. Em algum momento, o diálogo do homem com a natureza se rompe, e a estirpe é condenada à solidão."

José Lezama Lima, escritor, sobre "Cem Anos de Solidão"

A PAISAGEM

"O pano de fundo da produção de Gabriel García Márquez é marcado pela solidão --nela confluem a incomunicabilidade, o medo e a morte."

Trinidad Barrera, da Universidade de Sevilha

O TEMPO

"Como o tempo, a solidão e a fantasia, também as presenças dos fantasmas e da morte em García Márquez têm a precisa função de ampliar, de estender o campo das possibilidades humanas."

Gabrieli Morelli, da Universidade de Bérgamo

A VIDA

"Os personagens costumam nascer, viver e terminar suas trajetórias em um único lugar. Em algumas ocasiões, esse lugar pode carecer de nome, mas sempre se define como um local arquétipo que não tem significado em si mesmo."

Eva Valcárcel, da Universidade de La Coruña, sobre "Monólogo de Isabel Vendo Chover em Macondo"

A REALIDADE

"Não há, dirá nosso escritor, uma só linha em meus livros que não tenha sua origem em um fato real."

Mercedes Serna, da Universidade de Barcelona

OS HABITANTES

"As mulheres de seus relatos e contos costumam ser fortes e atuam com senso comum. Ao contrário, frequenta sua narrativa um protótipo de homem pouco prático e sonhador, como é o caso de Homero, ironicamente chamado de 'Rei da Casa', quando a rainha absoluta do destino familiar é, sem dúvida, Lázara, que, como a esposa do coronel, tenta atenuar as fantasias e ilusões de seu marido."

Trinidad Barrera, em leitura de "Boa Viagem, Senhor Presidente"

A CHAVE

"Em sua obra, a solidão é a falta de amor."

Iris M. Zavala, da Universidade de Utrecht

O MATRIARCADO

"Úrsula representa na novela a força criadora da terra. E, como ela, é mãe que proporciona alimento e abrigo. Representa o matriarcado no qual a mulher unida a um só homem legitima a relação física e a descendência segundo princípios espirituais."

Marino Sánchez Colomina e Natividad Pérez Pacheco, da Universidade de Sevilha, sobre "Cem Anos de Solidão"

A PERSONALIDADE

"É um dos autores que melhor colocou em sua obra o desmembramento da realidade que marcou o indivíduo deste século."

Ernest Folch, da Universidade de Barcelona

O AMOR

"O amor atua como um filtro que transforma e subjetiva tanto a apreensão do objeto amado como a realidade circundante. Dos extremos da idealização à divinização, há um espaço curto, que o amor, agente da mistificação, salva sem dificuldade."

Pilar Ballaraín, sobre "O Amor nos Tempos do Cólera"

OS HERÓIS

"A paixão amorosa era uma das suas principais obsessões narrativas. Podemos recordar toda uma série de personagens cujo único objetivo na vida se limita à obsessão com um só fim, entregando-se à tarefa com uma dedicação e uma paixão que os converte em verdadeiros heróis insensatos."

Carmen Esteban, da Universidade Autônoma de Barcelona, sobre o amor cortês em "O Amor nos Tempos do Cólera"

A LINGUAGEM

"É como se a linguagem fosse feita para contar histórias, para mudar o mundo aterrador, para mergulhar o homem nos vales confortáveis do sonho, sem que ele perceba. Como se se tratasse de mostrar a realidade por meio de um caleidoscópio, em que os pedaços coloridos se encaixam, multiplicados por numerosos espelhos."

Ricardo Escavy Zamora, da Universidade de Murcia

A RELIGIÃO

"Um dos grandes dons de García Márquez é não ter esquecido as origens religiosas de sua perspectiva sobre a vida. Tal sentimento religioso da vida é de suma importância na sua criação literária, ainda que geralmente esse sentimento tenha sido interpretado mais do ponto de vista da consciência mística, do realismo mágico ou de um famoso talento para presságios."

Michael Palencia-Roth, da Universidade de Illinois

O ESQUECIMENTO

"Criaturas protéicas, homens, borboletas e minerais se misturam nas armadilhas do esquecimento. Pois o esquecimento também copia os caprichos e artifícios da memória."

Nélida Piñon, escritora

Tradução Claudia Rossi

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