13. Angústia - Textos publicados na Folha
O cotidiano menor de Angústia
(publicado em 09/03/2003)
Li o romance "Angústia", de Graciliano Ramos, aos 20 anos e quando ainda vivia em São Luís. Estava descobrindo a literatura e buscava conhecer tudo o que me diziam ser importante. Já havia lido alguns romances de Machado de Assis e de Aluísio Azevedo, meu conterrâneo. A leitura de "Angústia" causou-me um impacto.
Hoje, 50 anos depois, tento entender as razões daquele impacto e percebo que a primeira delas foi o estilo, áspero e rude, do escritor. A cada frase, o narrador-protagonista ia se revelando uma personalidade ácida, que desconsiderava os ditos valores sociais, os quais não passavam, para ele, de mera hipocrisia.
Hipócritas eram todos, inclusive ele mesmo, que ganhava a vida alugando sua pena para redigir artigos venais. Um pobre diabo, que morava mal, numa casa que ele dividia com ratazanas e uma empregada surda.
Mas eis que vem morar na casa ao lado um casal de velhos com uma filha muito jovem e tentadora. Os risinhos dela, suas coxas, seus cabelos louros, suas frases provocativas viraram a cabeça daquele homem casmurro e lhe acenderam uma esperança de vida.
Esperança que durou pouco, é verdade, porque a jovem sedutora, mais interessada em meias de seda e sapatos da moda, logo o trocaria por outro, com mais grana e menos caráter.
Banhos de Marina - Reli o romance, agora. A força do estilo se mantém e a narrativa na primeira pessoa, entre sarcasmos e resmungos, nos arrasta inapelavelmente até o desfecho brutal.
Verifico então: uma das coisas que mais me fascinaram na primeira leitura, e se confirmou agora, foi a presença viva, no romance, do cotidiano menor daquelas pessoas anônimas, vivendo em fundos de quintal, a lavar e a estender roupas, a encher dornas de vinho, como a empregada que escondia moedas na terra do quintal. E os banhos de Marina, a mocinha sedutora, que ele acompanhava de seu banheiro pegado ao dela, ouvindo-a cantarolar, ensaboar-se e lavar-se com a água que escorria cantando por seu corpo e sumia no ralo. É nestes e em outros detalhes, nestas e em outras particularidades, que reside o caráter brasileiro, permanente, deste romance que se incorporou de vez à nossa literatura.
Não menos irresistível é a parte do livro que narra a frustração do personagem e sua revolta diante da traição que sofrera. A partir daí, suas lucubrações se misturam a alusões aos ratos que infestam a casa e que se infiltram por toda parte, no guarda-comida, no quarto de dormir, na estante de livros ("eles mijam na literatura"), e tudo roem, antes de morrerem em meio aos papéis, às roupas, aos mantimentos. A presença desses animais repugnantes, que lhe fogem ao controle, parece penetrar a própria alma do personagem, misturar-se ao seu ódio e à sua obsessão homicida.
A releitura serviu para convencer-me de que o romance nada perdeu com o passar dos anos. O estilo, o modo de narrar, de construir os personagens e fazer caminhar a ação dramática (que esse é o caso, em "Angústia"), são plenamente atuais e sem dúvida mais eficazes e intensos que o de muitos romances de agora.
E talvez essa atualidade resida no fato de que Graciliano, na sua aparente rudeza, comovia-se com o desamparo de seus personagens, nos quais identificava o seu próprio desamparo e de todo ser humano, "este bicho da terra tão pequeno".
Ferreira Gullar é poeta e ensaísta, autor de, entre outros, "Toda Poesia" (ed. José Olympio) e "Argumentação contra a Morte da Arte" (ed. Revan).
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