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13. Angústia - Textos publicados na Folha

Vidas secas ou a atrofia da palavra

(publicado em 09/03/2003)

por JOÃO CEZAR DE CASTRO ROCHA

Num ensaio de 1943, Otto Maria Carpeaux propôs uma leitura surpreendente do livro publicado apenas cinco anos antes: "Não é o sertão o culpado; 'Vidas Secas' é o seu romance relativamente mais sereno, relativamente mais otimista. O culpado é --superficialmente visto, numa primeira aproximação-- a cidade".

A oposição entre meio rural e meio urbano nada tem de nova. E parece mais interessante pensar que a cidade surge como a reserva de utopia em "Vidas Secas". Na projeção de Sinha Vitória e Fabiano, no parágrafo que encerra o romance, "andavam para o Sul, metidos naquele sonho. Uma cidade grande, cheia de pessoas fortes. Os meninos em escolas, aprendendo coisas difíceis e necessárias".

Dimensão utópica - Entretanto caracterizar "Vidas Secas" pela serenidade e pelo otimismo constitui um achado que merece ser desenvolvido. Afinal, superficialmente visto, o romance começa com uma "mudança" (título do primeiro capítulo) e termina numa "fuga" (título do último capítulo). Nomes diversos para o mesmo destino de retirantes em busca da sobrevivência. Os 13 capítulos do livro emolduram as ações transcorridas entre duas secas, ou seja, o termômetro das vidas severinas de Fabiano, Sinha Vitória, os dois filhos, a cachorra Baleia e o papagaio --"mudo e inútil. Não podia deixar de ser mudo. Ordinariamente a família falava pouco". Otimismo e serenidade?

A observação de Carpeaux exige que se recupere a dimensão utópica disseminada por Graciliano Ramos em pequenos gestos de seus personagens. "Utopia" pode ser uma palavra excessiva para o estilo só-lâmina de Graciliano. Mas o princípio esperança, esse não foi abandonado por Fabiano, até diante da iminência de nova estiagem: "Seria necessário mudar-se? Apesar de saber que era necessário, agarrou-se a esperanças frágeis. Talvez a seca não viesse, talvez chovesse".

Sinha Vitória aprendeu a lição e, outra vez na estrada, resolveu acreditar que "talvez esse lugar para onde iam fosse melhor do que os outros onde tinham estado". Embora infundada, a esperança retorna nos momentos mais adversos, alimentando uma crença relativamente serena que não se confunde com fatalismo, pois a esperança surge no fim do romance na possibilidade de superação de limites. Uma possibilidade frágil, já se viu. Mas muito distante da leitura consagrada, sintetizada por Álvaro Lins: "O final do livro é uma retirada, como o princípio fora uma chegada, dentro de uma fatalidade que o romance sugere (...)".

Porém, como descobrir em "Vidas Secas" um texto em alguma medida otimista? De um lado, a resposta se encontra no princípio esperança. De outro, na extraordinária investigação linguística e epistemológica que confere unidade ao romance. Esse é um ponto fundamental. A interpretação dominante estabeleceu padrão oposto, mais uma vez expresso por Álvaro Lins: "(...) a novela, tendo sido articulada em quadros, os seus capítulos, assim independentes, não se articulam formalmente com bastante firmeza e segurança".

Ora, Graciliano não pretendia representar pobres retirantes; o que, numa abordagem tradicional, demandaria uma narrativa estruturada através de ações continuadas dos personagens. Pelo contrário, Graciliano esforçou-se por apresentar a pobreza em suas consequências mais graves: a atrofia da linguagem e a anemia do pensamento.

A dificuldade no controle da linguagem e o consequente embaraço na ordenação do pensamento são os verdadeiros protagonistas de "Vidas Secas". No primeiro capítulo, a sobrevivência da família é assegurada com a morte do papagaio: "A fome apertara demais os retirantes e por ali não existia sinal de comida". Os sinais de diálogo eram igualmente escassos: "Depois daquele desastre viviam todos calados, raramente soltavam palavras curtas". Em todos os capítulos, observações semelhantes retornam obsessivamente, estruturando a narrativa em torno da relação entre palavras raras e pensamento inarticulado.

O menino mais velho ficara intrigado com a palavra "inferno", o que irritara sua mãe. Depois de um castigo que considerou injusto, buscou aconselhar-se com Baleia: "Tinha um vocabulário quase tão minguado como o do papagaio que morrera no tempo da seca. Valia-se, pois, de exclamações e de gestos, e Baleia respondia com o rabo, com a língua". O filho mais velho aprendera com o pai, que "às vezes utilizava nas relações com as pessoas a mesma língua com que se dirigia aos brutos --exclamações, onomatopéias".

Com tais recursos linguísticos, o pensamento pode se tornar tão hostil quanto o clima. O menino mais novo queria impressionar seu irmão e a cachorra. Fracassou, "fez tenção de entender-se com alguém, mas ignorava o que pretendia dizer. A égua alazã e o bode misturavam-se, ele e o pai misturavam-se também". O filho mais novo aprendera com a mãe, que enfrentava idêntica dificuldade para expressar o desejo por uma cama de gente como a de Seu Tomás da bolandeira: "Isto lhe sugeriu duas imagens quase simultâneas, que se confundiram e neutralizaram".

A arquitetura de "Vidas Secas" revela-se toda no capítulo "Inverno", sétimo do conjunto de 13 capítulos. Reunida a família em torno do fogo, palavras atravessavam o ambiente. Tratava-se da "conversa dos pais. Não era propriamente conversa: eram frases soltas, espaçadas, com repetições e incongruências".

Ora, essa arquitetura sutil se completa no último capítulo, "Fuga", simétrico invertido do primeiro, "Mudança". Nesse, os retirantes mudavam-se de uma fazenda a outra, mas em nada alteravam sua condição de "quase uma rês na fazenda alheia". Rês, res: coisa, apenas. Naquele, ao contrário, os viventes buscavam fugir do círculo perverso, imaginando um lugar, "uma terra desconhecida", a cidade grande.

E como fazê-lo? Através do controle inesperado da linguagem. Nesse capítulo, "Fuga", os personagens deixam de trocar palavras: eles realmente dialogam. "Sinha Vitória precisava falar. (...) Chegou-se a Fabiano, amparou-o e amparou-se". Nas páginas finais, Graciliano semeia diversas vezes a palavra decisiva: conversa. É através da linguagem que os viventes se fortalecem. E, pela primeira vez no romance, Fabiano "mostrou os dentes sujos num riso infantil". Riso de quem era in-fans, de quem pouco falava e quase nada escutava. Agora, "as palavras de Sinha Vitória encantavam-no. Iriam para diante (...)".

A linguagem transformou "quatro sombras" numa família. E quem sabe no capítulo que não foi escrito os dois meninos recebessem nomes próprios.

João Cezar de Castro Rocha é professor de literatura comparada na Universidade do Estado do Rio de Janeiro. É autor de "Literatura e Cordialidade" (Eduerj).

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