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13. Angústia - Textos publicados na Folha
A construção da escrita em Graciliano
(publicado em 29/04/2003)
Graciliano Ramos começa a ter sua obra reeditada nos 50 anos de sua morte. A seguir, trechos do novo posfácio de "S. Bernado", de Godofredo de Oliveira Neto.
'S. Bernardo' é o segundo romance de Graciliano Ramos, lançado em 1934, um ano após a publicação de 'Caetés'. A crítica o considera a mais importante obra de ficção do movimento modernista envolvendo o regime fundiário e os conflitos sociais no Nordeste brasileiro. 'S. Bernardo' firmou Graciliano Ramos como um dos maiores romancistas de toda a literatura brasileira. A linguagem despojada do escritor é comumente comparada --numa visão impressionista e sem embasamento teórico-- à aridez do sertão e ao reduzido vocabulário do sertanejo, personagem que mobilia a sua narrativa. De fato, são por todos sobejamente conhecidas, além da nobreza e da parcimônia com que Graciliano faz uso do idioma, as preocupações do autor com o uso da língua portuguesa.
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A história de 'S. Bernardo' se passa na década de 30. O narrador, Paulo Honório, de 50 anos, tenta revisitar dramas da sua vida e conflitos internos que até o momento em que o livro era escrito permaneciam inexplicáveis. Nem a fazenda São Bernardo, que Paulo Honório comprou por preço irrisório, nem a professora Madalena, a quem contratou para alfabetizar as crianças do seu empreendimento rural e com quem acaba se casando, deram-lhe o sossego que tanto buscava. Resta-lhe a escrita; talvez ela lhe devolva a paz desejada. Mas os fatos e o tempo não voltam. Há, assim, em função desse tipo de narrativa, uma constante transição entre passado e presente já que o narrador, além de nós, leitores, é também o destinatário da história que ele tenta reeditar.
A referência a um projeto, a um imaginário, avulta logo no primeiro parágrafo, na frase 'antes de iniciar este livro, imaginei construí-lo pela divisão do trabalho'. Essa divisão do trabalho refere-se à divisão social das tarefas. Para Paulo Honório, a língua não constitui um território homogêneo, mas, ao contrário, ela se decompõe em linguagens especializadas: 'Padre Silvestre ficaria com a parte moral e as citações latinas; João Nogueira aceitou a pontuação, a ortografia e a sintaxe; prometi ao Arquimedes a composição tipográfica; para a composição literária convidei Lúcio Gomes de Azevedo Gondim, redator e diretor do Cruzeiro. Eu traçaria o plano, introduziria na história rudimentos de agricultura e pecuária, faria as despesas e poria o meu nome na capa'.
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No primeiro capítulo o leitor enxerga com todas as letras a conflituosa relação entre a capacidade do narrador de imaginar o livro e a sua efetiva realização através da escrita. Um dos convidados para construir o livro 'S.Bernardo' não entendeu o recado. 'Vá para o inferno, Gondim. Você acanalhou o troço. Está pernóstico, está safado, está idiota. Há lá ninguém que fale dessa forma!'. Se Gondim é pernóstico é tanto pelo seu estilo --inadequação entre a escrita e a coisa a dizer-- como também pela inadequação entre o que se diz e a experiência que se quer transmitir. A língua escrita não consegue dar conta do ímpeto de contador de Paulo Honório: 'João Nogueira queria o romance em língua de Camões, com períodos formados de trás para diante. Calculem'. A norma lusa é caricaturada, comparada à língua de Camões. É o peso da norma clássica impedindo que o narrador passe para a forma escrita a história que tem em mente. Resta a língua falada. A oralidade, aparentemente, é a única modalidade linguística que permitiria ao narrador levar a cabo a sua tarefa. A escrita, entretanto, possui exigências que a afastam contínua e sistematicamente da oralidade. Graciliano não está procurando propriamente uma realidade oral, mas buscando aproximar a carga simbólica da escrita dos constituintes simbólicos da prática corrente, que são, esses, redutíveis a fórmulas orais. O essencial da história que o narrador tem na memória --ou na imaginação-- não pode ser compartilhado. Aquela realidade, inevitavelmente encharcada de fantasia, só poderá ser descrita pelo próprio Paulo Honório.
Assim, em consequência da dificuldade em dominar a língua escrita, vale dizer as regras da arte, o empreendimento-livro 'S. Bernardo' parece ameaçado. A arte, porém, é imperativa. Paulo Honório ouve o pio de uma coruja. Nesse momento o ato de escrever é exigido não pela técnica, não pelo livro, mas por um elemento exterior e mais profundo. A escrita, enquanto técnica, é relegada para plano inferior, ao passo que a cena passa a ser ocupada por uma motivação intransmissível. O impulso para a escrita é determinado por um elemento exterior, numa atmosfera noturna, onde o homem perde um pouco as fronteiras do cotidiano e do racional, e se torna mais permeável aos signos da natureza. Paulo Honório, então, já não faz cálculos ligados à escrita, mas é antes a força da pulsão que o arrasta para essa escrita. O ato se torna isento de cálculo; gratuito, como um ato de autêntica criação. O narrador confessa que é a coruja a desencadeadora do processo narrativo. Ave noturna, animal pressago, portador de elementos conotando a morte ou a tragédia mas também a possibilidade do conhecimento.
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Godofredo de Oliveira Neto, 52, é professor de Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro e é autor de "Ana e a Margem do Rio" (Record, 2002) e "Marcelino Nanmbrá, o Manumisso" (Nova Fronteira, 2000), entre outros.
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