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Ficção organiza o caos social, diz Llosa

(publicado em 09/08/1994)

Cansado de política, autor fala sobre seu novo romance, "Lituma nos Andes", e elege Jorge Amado para o Nobel

JOSÉ GERALDO COUTO
Da Reportagem Local

Mario Vargas Llosa, 58, diz ter escrito seu novo romance, "Lituma nos Andes", num "estado de júbilo" por estar de volta à literatura, depois de três anos dedicados à política (foi candidato derrotado à presidência do Peru em 1990).

O romance, que vendeu 200 mil exemplares na Espanha, está sendo lançado pela Companhia das Letras para a Bienal do Livro, que abre dia 17. Em novembro, a editora lança "Peixe na Água", mistura de memórias pessoais e políticas do autor (leia trechos ao lado).

Vargas Llosa, que deve vir ao Brasil no final do ano, adquiriu recentemente dupla cidadania (peruana e espanhola). Mora em Londres e não pretende voltar tão cedo ao Peru, onde é hostilizado pelo regime de Alberto Fujimori. Nesta entrevista, concedida por telefone de Marbella (Espanha), onde passa férias, ele falou à Folha sobre literatura, política e cinema.

Folha - O cabo Lituma, protagonista de seu livro, é um homem do litoral, um estrangeiro no mundo primitivo dos Andes...

Llosa - Exatamente. É um homem da costa, de um Peru mais ocidentalizado, num mundo andino marcado pela cultura pré-hispânica, quíchua. Ele não conhece essa cultura, não conhece a língua quíchua. A paisagem o aborrece, ele se atordoa com as alturas.

Folha - O sr. se sente um pouco assim, diante do Peru?

Llosa - Veja, o Peru não é um país, mas muitos países. Há os índios, os brancos e os negros, há a costa, a serra e a selva, há a cultura pré-hispânica quíchua e aimará, há o Peru ocidentalizado. O Peru é uma espécie de arquipélago, o que cria enormes dificuldades e conflitos. Ao mesmo tempo, essa diversidade é sua grande riqueza.

Folha - Mas o sr. se identifica com a lucidez de Lituma, se sente como um iluminista na selva?

Llosa - No campo político, sim. É preciso manter a lucidez, mesmo que isso pareça uma espécie de loucura num contexto em que a loucura é a norma. No campo literário, não. No campo literário estou a favor da loucura, da fantasia, dos fantasmas, dos mitos.

Folha - Em seus livros, percebe-se um duplo desejo: o de dar voz aos derrotados e o de conferir alguma ordem ao caos social.

Llosa - Sem dúvida. Aliás, creio que esta é, de certa forma, a função do romance. O romance cria uma ordem, que é uma ordem fictícia, inventada, artificial, mas que de alguma maneira nos permite uma perspectiva sobre o mundo, que por si próprio se apresenta a nós como um puro caos. Creio que é por isso que os romances e a ficção em geral têm seu auge naqueles períodos históricos em que o ser humano vive a realidade como caos e se sente perdido.

Folha - Como agora?

Llosa - Bem, este é o caso da América Latina e, nos últimos anos, do romance centro-europeu -tcheco, polonês, romeno-, que é o mais interessante que surgiu recentemente na Europa. Em ambos os casos, são expressões de uma convulsão histórica.

Folha - O sr. se vê como um renovador da tradição realista européia e americana?

Llosa - Creio que a literatura que faço pode ser chamada de realista, ainda que as etiquetas sejam sempre discutíveis. O fato é que o meu material de trabalho é fundamentalmente a realidade objetiva, não uma realidade fantástica.

Folha - Seus livros são em geral construções narrativas muito complexas e sofisticadas...

Llosa - Para mim, a estrutura é o elemento fundamental para conseguir o poder de persuasão de uma história.

A maneira como se organiza o tempo, como se estabelecem os distintos pontos de vista, o que se diz e o que se cala, tudo isso é o que cria um mundo coerente, persuasivo, um mundo realmente alternativo.

Trabalho muito a estrutura porque me parece que é aí que se joga o êxito ou o fracasso de uma criação narrativa.

Creio que aprendi isso sobretudo com Faulkner, que foi um autor de cabeceira de minha juventude. Mas também com os escritores do século 19, como Flaubert, Tólstoi, Balzac, que me deram a idéia do romance como uma grande criação que simulava a realidade total, o mundo total, a sociedade total.

Folha - Como é seu método de criação? O que vem primeiro: os personagens, o tema, a trama?

Llosa - Primeiro, uma certa inquietude, um desassossego em torno de uma idéia que pode ser um personagem, pode ser uma figura. No caso de "Lituma", o ponto de partida foram uns fatos muito confusos que ocorreram no Peru, nos quais se falava em casos de desaparição e de canibalismo numas minas muito remotas na serra.

Depois, em 90, quando percorri o Peru devido à ação política, me impressionou muito que a terrível violência do terrorismo e dos militares nos Andes não só tinha criado tragédias, mas também feito ressurgir velhas práticas mágicas e supersiticiosas que vinham do mundo pré-hispânico.

Folha - Em seus livros, os cortes vertiginosos na narrativa fazem lembrar o cinema...

Llosa - Sem dúvida. Acho que toda a minha geração foi marcada pelo cinema. O cinema teve um impacto na literatura, sobretudo na organização do tempo narrativo. O cinema nos familiarizou com esses saltos bruscos ao passado, ao futuro. Graças ao cinema, o tempo, no que se refere à narração, se converteu em um espaço.

Isso pode enriquecer uma história, porque permite criar climas, introduzir elementos de suspense, dar um contexto ao que se narra.

Folha - Além de Euclides da Cunha, que outros escritores brasileiros o sr. admira?

Llosa - Sou um grande admirador de Machado de Assis, que me parece o maior escritor latino-americano do século 19, o nosso Balzac. É o tipo de romancista que admiro e emulo, o romancista que compete com Deus.

Entre os modernos, Guimarães Rosa é um dos grandes da América. Jorge Amado é um magnífico escritor, que curiosamente foi ficando mais jovem como autor à medida que envelheceu. Seus primeiros romances pareciam de um homem muito mais velho que os últimos, que são risonhos, insolentes. Admiro muito também minha amiga Nélida Pi¤on.

Folha - Depois de Garcia Márquez e Octavio Paz, agora é a sua vez de ganhar o Nobel?

Llosa - Acho que um autor não deve falar nem pensar no Nobel, se não quiser ficar tonto (risos).

Folha - Se tivesse que votar, em quem votaria?

Llosa - Sem nenhuma dúvida em Jorge Amado.

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