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15. Pantaleón e as Visitadoras - Textos publicados na Folha
Retrato pessimista da violência
(publicado em 23/04/1995)
O tom apocalíptico de Enzensberger não lhe permite ver as possibilidades emancipadoras do capitalismo
É a primeira vez na história que os países podem escolher entre prosperidade e pobreza, contrariando os vaticínios agourentos de Enzensberger
MARIO VARGAS LLOSA
Especial para o "El País"
Quando a inteligência de um escritor se desdobra com tanto brilhantismo quanto nos ensaios de Hans Magnus Enzensberger e escolhe tão bem os exemplos para fundamentar uma tese que desenvolve com tanta coerência, num estilo tão claro e elegante, ela seduz os leitores, embota sua capacidade crítica e os leva a aceitar como verdades indiscutíveis as mais fantásticas afirmações.
Sou vítima confessa desse encanto cada vez que o leio, e o faço com frequência, pois não conheço entre meus contemporâneos um ensaísta mais estimulante e com um senso mais agudo do urgente, do que constitui a verdadeira problemática da atualidade.
Bom exemplo disso são seus dois últimos livros, "A Grande Migração e "Visões da Guerra Civil, temas que estarão no cerne da discussão política internacional no futuro imediato e, possivelmente, em boa parte do século que se aproxima.
Seduzido por sua apocalíptica descrição do mundo em que vivemos --convulsionado por deslocamentos de populações rejeitadas em algum lugar e ameaçadas de aniquilamento por uma violência cega, autista, molecular e protoplasmática-- tenho desfrutado desse "agradável horror com que, diz Borges, os contos fantásticos povoavam suas noites.
Embora escritos separadamente, os dois ensaios se referem ao verso e reverso de um mesmo fenômeno. As migrações em massa, causa e efeito de boa parte dessa violência generalizada que Enzensberger vê apoderando-se do mundo à maneira de uma epidemia --uma espécie de Aids social--, existiram sempre, e em determinadas épocas atingiram porcentagens mais altas do que as de agora.
A diferença é que, antigamente, eram bem-vindas --os colonos europeus nos Estados Unidos, Canadá ou Austrália, os trabalhadores espanhóis, turcos ou italianos na Alemanha e Suíça dos anos 60. Hoje, provocam um repúdio que atiça o racismo e a xenofobia.
Essa mudança de sentimento em relação ao imigrante nas sociedades modernas se origina, em parte, do chamado "desemprego estrutural, esses empregos desaparecidos que nunca voltarão e o consequente temor dos indivíduos de se verem substituídos por forasteiros num mercado de trabalho que se encolhe. E, em parte, desses indivíduos sentirem ameaçada sua identidade cultural própria, ao verem-se obrigados a coexistir com comunidades de outras línguas, costumes e religiões, que não querem (ou aos quais não se permite) dissolver-se nos do país anfitrião.
Enzensberger desbarata com impecáveis argumentos todas as fantasias e mitos sobre as "sociedades homogêneas --que não existem--, oferecendo como exemplo a alemã, que, ao longo de sua história moderna, recebeu e digeriu incontáveis migrações, ao mesmo tempo que enviava emigrantes a diversas regiões do mundo. E, com razão, observa que a repugnância dos países prósperos em relação ao imigrante desaparece quando este é rico.
De tudo isto, Enzensberger conclui que o verdadeiro problema não é o da imigração, e sim da pobreza, e que esta é, portanto, a raiz, a explicação recôndita dessa violência que percorre o mundo como um incêndio.
Até aqui, consigo acompanhá-lo. Também --embora apenas parcialmente, pois desconfio que exagera-- o acompanho em sua análise dessa violência moderna que, segundo ele, já não requer pretextos ideológicos ou religiosos para estourar, frequentemente de maneira gratuita e autodestrutiva, que vai convertendo o mundo numa selva de tribos em conflito, onde "toda diferença passou a ser um risco mortal e onde "um vagão de metrô pode transformar-se numa pequena Bósnia.
Não obstante, o fanatismo nacionalista que consome a ex-Iugoslávia ou o fanatismo religioso que está por trás dos assassinatos na Argélia não se encaixam dentro desse identikit: não existe nessas atitudes a mera pulsão sonâmbula de matar ou morrer, senão a convicção --estúpida e criminosa, sem dúvida-- de que, agindo desse modo, se está lutando por uma causa que justifica o terror.
Parece-me preferível que seja assim, pois a violência que nasce de uma idéia ou de uma fé se pode combater, enquanto aquela outra, fatídica, que viria programada metafísica ou geneticamente na condição humana, não é resistível e nos precipitaria irremediavelmente no apocalipse.
O pessimismo de Enzensberger tem como ponto de partida a criação do mercado mundial. O triunfo do sistema capitalista e o fato de que hoje a produção e o comércio só possam ser feitos em escala planetária, dentro dessa rede de interdependência econômica em que funcionam as empresas e os países, criou uma enorme massa de pobres "estruturais (ele os chama de "massas supérfluas), que, nos países do Terceiro ou do Primeiro Mundo (já que o Segundo desapareceu), vivem condenados a uma marginalidade da qual não têm possibilidade de escapar.
Ouçamos Enzensberger: "É incontestável que o mercado mundial, desde que deixou de ser uma visão distante e se converteu em realidade global, fabrica cada ano menos ganhadores e mais perdedores, e isso não apenas no Terceiro Mundo ou no Segundo, mas também nos altos centros do capitalismo. Lá, são países e até continentes inteiros que se vêem abandonados e excluídos dos intercâmbios internacionais; aqui, são setores cada vez maiores da população que, numa concorrência mais e mais acirrada pelas qualificações, não conseguem seguir adiante e caem... Pode-se concluir que a violência coletiva não é outra coisa que a reação desesperada dos perdedores a sua situação econômica insolúvel.
Este catastrofismo não está respaldado nos fatos e se fundamenta numa visão errônea do capitalismo, um sistema muito mais ávido do que Enzensberger supõe. Graças à voracidade que lhe é inata, o sistema que criou o mercado foi se estendendo, desde as antigas cidades européias onde nasceu, por todos os cantos do mundo, e estabeleceu esse "mercado mundial que, de fato, já é uma realidade irreversível. Graças a isso, os países "pobres podem, hoje em dia, deixar de sê-lo e, como Cingapura, chegar a ter uma estrutura econômica mais sólida que a da Grã-Bretanha, ou as astronômicas reservas financeiras de Taiwan, ou criar um milhão de empregos em cinco anos, como fez o Chile.
É essa nova realidade que alterou profundamente o mundo europeu e que gera insegurança e medo naqueles que --com razão-- desconfiam que ela acabará por modificar instituições e costumes --sobretudo privilégios-- que se acreditava serem imutáveis. A idéia de nação, por exemplo, e os conceitos de identidade, de cultura e certos hábitos e perspectivas no trabalho e nas relações humanas, que nada terão a ver com os do passado.
Boa parte dos conflitos atuais --como aqueles motivados pelas novas manifestações de nacionalismo e integrismo-- são reações instintivas de comunidades e indivíduos contra esta revolução que está acabando com a cultura da tribo e criando um mundo de individualidades relegadas a elas mesmas, "sem deus nem pátria, mas --esperemos-- com lei. Pois se esta última também desaparecesse, é provável que o pesadelo de Enzensberger se tornasse realidade, mesmo que por outros caminhos.
É nesta mundialização da vida que se deve procurar as razões dessa violência coletiva que, de fato, cresce de maneira dramática. Acredito que ela tenha a ver, em boa parte, com a universalização das comunicações, que todos os dias, a cada minuto, faz os pobres saberem o que não têm, tudo aquilo de que estão privados e que outros desfrutam. Isso cria impaciência, inquietação, frustração, desespero, e os demagogos políticos e religiosos sabem aproveitar esse caldo de cultivo para seus propósitos dementes.
Mas essa insatisfação dos pobres com sua pobreza é também uma energia formidável que, bem canalizada, pode converter-se em extraordinária força motriz do desenvolvimento. Foi assim que aconteceu nos países do sudeste asiático, que, apesar de todas as críticas que lhes possam ser feitas --no que diz respeito à liberdade política e aos direitos humanos, por exemplo-- mostraram que era possível criar milhões de empregos e condições de vida dignas para sociedades que, até ontem, apenas, figuravam entre as mais atrasadas do planeta. A mesma coisa começa a acontecer na América Latina, onde o Chile é hoje um modelo de crescimento com democracia.
Não se trata de otimismo ingênuo, e sim de simples comprovação de que existem exemplos suficientes na realidade contemporânea de que o sistema de livre empresa e de mercado, se é adotado com tudo que implica --e implica, desde já, muitos sacrifícios e esforços--, pode tirar um país da pobreza, e isso num prazo relativamente curto. É verdade que poucos países terceiro-mundistas escolheram essa opção, mas também é verdade que ela está ali, a seu alcance, esperando que se decidam a fazê-lo. É a primeira vez na história humana que isso acontece --que os países podem escolher a prosperidade ou a pobreza-- e, nem que fosse apenas por isso, contrariando os agourentos vaticínios de meu admirado Hans Magnus Enzensberger, acredito que ambos tivemos muita sorte de termos nascido nesta época.
Copyright Mario Vargas Llosa. Os direitos internacionais deste texto pertencem ao jornal "El País". O Mais! publica quinzenalmente os textos de Mario Vargas Llosa
Tradução de CLARA ALLAIN
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