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15. Pantaleón e as Visitadoras - Textos publicados na Folha

Vargas llosa reflete sobre suas criações

(publicado em 29/04/1995)

O escritor, que recebe hoje o prêmio Cervantes na Espanha, fala de política e sua relação com a literatura

Do "El País"

O escritor peruano Mario Vargas Llosa está hoje na Espanha para receber, das mãos do rei Juan Carlos, o prêmio Miguel de Cervantes.

O prêmio é concedido pelo conjunto da obra de um escritor, e é a mais importante premiação das letras espanholas.

Nessa entrevista Llosa fala de seu mestre Willian Faulkner, do escritor colombiano Gabriel García Márquez e de seu processo de criação.

Pergunta -- Uma das particularidades de sua obra é que sua escrita transcorre com suavidade, como se o sr. tivesse uma enorme facilidade para contar coisas.

Resposta -- É interessante o que você diz, porque não tenho facilidade. Admiro isso muitíssimo. Esse tipo de facilidade é inconcebível para mim. Ela não acontece comigo, sequer em meus artigos. Quando escrevo um artigo, tenho que reescrevê-lo.

Nunca vou me esquecer de que ouvi Julio Cortázar dizer que escreveu "O Jogo da Amarelinha'', um livro tão elaborado, sentando-se cada manhã diante da máquina de escrever, sem saber o que iria acontecer.

Pergunta -- Ser cada vez mais lido e ter se tornado famoso aumentou essa dificuldade?

Resposta -- Sempre foi igual, desde o primeiro trabalho. A única diferença é que quando comecei a escrever meus primeiros contos, minha insegurança era terrível porque eu não sabia se iria terminá-los. Agora sei que se insisto, que se trabalho, quebro a cabeça, acabam saindo.

Pergunta -- Quando o sr. começa um livro, tem toda a estrutura pronta, o livro completo?

Resposta -- Tenho algumas idéias, às vezes um personagem, um ambiente. Faço muitas fichas, faço anotações. Nunca começo a redigir sem ter um esquema. Melhor dizendo, algumas trajetórias.

Pergunta -- O sr. é disciplinado no trabalho?

Resposta -- Muito. Como não tenho facilidade, tenho que ter disciplina. Não posso esperar o arroubo, por assim dizer, chegar. Tenho que procurá-lo, e me custa sangue, suor e lágrimas criar esse clima a que chamam inspiração. Para mim é um trabalho artesanal.

Pergunta -- William Faulkner foi para o sr. um guia. O escritor-chave. Juan Benet, a quem acontecia o mesmo, certa vez abriu um livro de Faulkner, leu um parágrafo e disse que a beleza do texto o havia impedido de escrever durante anos.

Resposta -- Faulkner foi o primeiro escritor que li com lápis e papel, fascinado por suas estruturas, como organizava o tempo, os pontos de vista, por como o narrador se revezava entre diferentes personagens. Por sua maneira de ocultar dados para criar determinados climas.

Faulkner exerceu uma influência enorme sobre mim, sobretudo na época em que eu era estudante universitário, quando o descobri.

Pergunta -- Foi com ele que o sr. aprendeu a não ser o que o sr. chama de escritor "telúrico?

Resposta -- Exatamente. Cresci num mundo marcado por essa idéia completamente ingênua de que se você tem um bom tema, se uma história é original o romance já está 90% garantido.

Lendo Faulkner, você se dá conta de que todos os temas são bons ou maus, que não depende do tema, e sim de seu tratamento, do que você faz com ele. Da linguagem com que você conta a história, da maneira como a conta e, sobretudo, do tempo. Você vê a importância decisiva da narrativa.

Pergunta -- O sr. disse que a literatura hispano-americana tem seu precedente nas crônicas da conquista da América.

Resposta -- Sim. A mesma imaginação, a fantasia. Claro. Porque nas crônicas há essa confusão, essa mistura do real e do fantástico, do mundo objetivo e do mundo mítico ou lendário. É a mesma coisa que acontece num ramo muito rico da literatura hispano-americana, sobretudo em García Márquez e Alejo Carpentier.

Pergunta -- O sr. foi um dos protagonistas do "boom da literatura hispano-americana. Sempre acontece que de repente surgem uma série de figuras brilhantes e depois nada, como se a safra tivesse secado. Isso acontece por acaso?

Resposta -- É estranho. Há períodos que são privilegiados para as artes plásticas, para a poesia ou para a música; ou para um gênero, como o romance. Sempre acontece isso e a coisa se produz em circuitos que parecem muito arbitrários. Acredito que no caso do romance talvez exista uma certa explicação.

Quando uma sociedade vive momentos de estabilidade, sua produção de romances não costuma ser muito rica.

Mas quando passa por um momento de decadência violenta ou colapso, a produção cresce.

Quando as pessoas se sentem inseguras, cria-se uma necessidade dessas ordens artificiais que são os romances. Mas isso também deve ser visto como tendência, já que na literatura, na arte, não existem leis.

Pergunta -- O sr. já figura na história da literatura, mesmo que nunca mais escreva nada. Isso é reconfortante?

Resposta -- Não, a não ser que você se considere uma estátua petrificada, olhando para seu passado. Todo escritor deseja continuar escrevendo e que seus melhores livros sejam aqueles que ainda não escreveu.

Pergunta -- Essa é uma aspiração cheia de dúvidas?

Resposta -- Nunca se sabe. A história não está escrita, está por fazer, e portanto tudo pode acontecer, inclusive que o que eu escreva agora seja o melhor que venha a escrever em minha vida.

Essa idéia de Rimbaud, por exemplo, um gênio quando adolescente e de repente esse fogo sagrado se apaga, e passa a ser outra pessoa já não interessante.

Pergunta -- O sr. sabe quais são seus melhores romances?

Resposta -- Sei os que me custaram mais trabalho e que eu gostaria que fossem os melhores: "Conversas na Catedral e "A Guerra do Fim do Mundo.

No entanto, para surpresa minha, o que fez mais sucesso e que foi mais traduzido é "Tia Júlia e o Escrevinhador. "Conversas na Catedral foi muito menos lido. Foi trabalhoso escrevê-lo.

Eu tinha tudo: o tema, o clima, a época, uma sociedade em processo de decomposição, mas eu não encontrava uma armação para dar coerência aos personagens.

Pergunta -- O sr. quis ser presidente do Peru porque já não se divertia tanto escrevendo, porque desejava algo novo?

Resposta -- Em nenhum momento eu senti que estava cansado da literatura. Digamos que a política foi como procurar um tipo de fantasia diferente, mas sempre continuei me sentindo escritor e inclusive me angustiava, pensando que quando vencesse as eleições, iria passar anos fora da literatura.

Pergunta -- É curioso que depois de viver fora do Peru por tantos anos, depois de seu distanciamento, o sr. tenha desejado chegar a ser seu dirigente. Foi uma tentação de criar um desses mundos dos quais se escreve nos romances?

Resposta -- Sim, porque você vive num mundo de palavras, de fantasmas. Desde jovem, sempre me senti fascinado pela história se fazendo, e o fato de vê-la de perto, vivê-la, me sentir no centro dessa vida florescendo nas ruas, nesse mundo da política ativa, foi para mim, sem dúvida alguma, uma coisa muito fascinante.

Pergunta -- O sr. acha que é uma boa coisa que se peça aos escritores hispano-americanos, ou que eles assumam, algo mais que uma crítica ao poder? E sobre García Márquez?

Resposta -- Acho que se concede ao escritor uma espécie de mandato que não se justifica. Por fazer literatura deviam dar conselhos sobre moral, sobre religião, sobre política. Uma tradição que se manteve na América Latina.

Por outro lado, está bem que a literatura se contamine, que seja algo mais do que um jogo puramente intelectual.

Pergunta -- Eu gostaria de saber se o sr. e Gabriel García Márquez se reconciliaram.

Resposta -- Não, não o vejo há muitos anos. Mas leio seus livros.

Pergunta -- O que o sr. acha de seu último livro?

Resposta -- Muito bem escrito. Gosto mais de outros livros dele, mas sempre é divertido esse jogo da imaginação, o brilhantismo.

Me parece menos rico, menos ambicioso que outros, mas muito ágil, com essa prosa elegante que se lê com muito prazer.

García Marquez é um caso interessante; como diz Jorge Edwards num ensaio, em sua vida privada está muito comprometido com uma causa, que não é a minha e que eu critico, mas quando escreve faz uma literatura mais de fantasia; é um literatura menos engajada do que se possa imaginar.

Pergunta -- Em "Cem Anos de Solidão?

Resposta -- Não. Nesse livro a grandeza está no fato de que ao mesmo tempo que é fantasia e imaginação efervescente, tem suas raízes mergulhadas numa problemática histórica, social e política, na qual se reconhece a América Latina e o mundo contemporâneo.

Tradução de Clara Allain

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