16. Sidarta - Textos publicados na Folha
Hesse estiliza traumas da juventude
(publicado em 02/04/1999)
NELSON ASCHER
da Equipe de Articulistas
Apesar de ter morrido no começo dos anos 60 e escrito a maior parte de sua obra antes mesmo da Segunda Guerra, Hermann Hesse (1877-1962) era um autor cuja sensibilidade se afinava ou harmonizava de modo feliz com o clima dos anos da contracultura e do movimento hippie e, por isso ele voltou a se tornar um sucesso entre os jovens de então. Esse sucesso perdurou, sem dúvida, por mais algumas décadas, e sucessivas gerações de adolescentes encontraram em suas obras não tanto uma resposta aos seus dilemas, nem mesmo uma formulação clara de suas angústias, mas uma espécie de empatia essencial, uma tradução para um plano estético de seus próprios temores e confusões.
Essa popularidade, entre os adolescentes, de um autor cuja adolescência coincidiu com o fim do século passado e foi vivida numa sociedade muito diferente de qualquer contemporânea, a saber, a da sisuda Alemanha imperial, pode parecer surpreendente. No entanto, ao estilizar mais ou menos oniricamente os problemas e traumas de sua própria juventude, ele tocou em alguns temas basicamente universais e, se a rigidez da educação e das instituições que ele criticava tinha sido no seu caso bastante real, seus leitores mais recentes foram capazes de lê-la enquanto uma hipérbole para a qual, em todo caso, a tendência juvenil ao exagero já os predispunha.
Romances como "Demian", "Sidharta", "O Lobo da Estepe" e outros, bem como os temas do artista sensível e incompreendido, da riqueza do mundo subjetivo e infantil contraposta à aridez da realidade cotidiana e adulta, as grandes emoções incapazes de encontrar uma forma e os grandes pensamentos sem assunto, tudo isso, de tão precisamente talhado a uma certa idade da vida das pessoas, se tivesse sido concebido hoje em dia, e não 70 ou 80 anos atrás, levantaria suspeitas de uma pesquisa prévia de opinião e mercado. Embora esse conjunto de temas e preocupações não fosse novo, pois vinha desde o romantismo alemão, Hesse foi, à sua maneira, o inaugurador de uma vertente literária na qual, associado à maneira como o abordava, o conjunto em questão passou a ocupar um lugar não periférico, mas central. Além disso, numa época na qual a Índia popular era a dos tigres e de Rudyard Kipling, o escritor alemão, cujo pai e avô materno haviam, aliás, sido missionários na Índia, criou uma versão do subcontinente que, duas décadas antes de Mircea Eliade visitá-lo, já correspondia à pátria da sabedoria e do misticismo dos anos 60.
Para os que já travaram conhecimento com esses aspectos de Hesse, a leitura de seu volume de recordações, observações e meditações, "Felicidade", será uma experiência útil. Não é que nele se revele o escritor por trás da máscara dos personagens. O que se revela é até que ponto elas correspondiam seja à imagem que ele fazia de si mesmo, seja àquela que desejava que seus leitores fizessem, isto é, do velho sábio que teima em afirmar que nada sabe.
Não raro, por exemplo, ele refere-se a si mesmo como "nós artistas" e, quando diz isso, patenteia-se que não está falando de um profissional qualquer, mas de um ser diferente das pessoas comuns, alguém que se relaciona de modo especial com o mundo e particularmente com a natureza. Assim, vários de seus textos contém longas descrições e/ou reflexões sobre lagos, bosques e montanhas, algo previsível num herdeiro dos românticos que desde os anos 10 escolheu viver na Suíça.
Outros ensaios abordam o ofício do escritor e sua matéria-prima, a palavra, mas não o fazem obviamente de uma forma técnica ou ensaística, e sim de acordo com uma prosa menos argumentativa que associativa à qual se poderia acrescentar facilmente tanto o adjetivo "filosófica" quanto o "poética". Hesse ganha mais precisão quando lida com um assunto menos abstrato e, nesses momentos, seus ensaios se tornam mais interessantes.
Num desses ele discute sua própria relutância em retirar, a pedido de um judeu ortodoxo, uma única palavra de um livro escrito 25 anos antes, e nessas linhas se pode entrever uma ou outra das razões que o levaram a se manter longe de seus compatriotas no momento mais abjeto de sua história. Em outro, ele fala de sua relação de leitor, correspondente e, enfim, de seu contato pessoal com André Gide e nesse momento ele entremostra que não era absolutamente um mau observador. No geral, os textos desse volume, todos escritos depois da guerra, reiteram, na velhice do autor, a visão peculiar que o havia levado a começar, meio século antes, a sua obra.
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