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21. As Cidades Invisíveis - Textos publicados na Folha

Calvino interpreta a literatura como jogo

(publicado em 03/11/1993)

Em 'Por Que Ler os Clássicos', recém-lançado aqui, o escritor analisa de Homero e Ovídio a Hemingway e Borges

MARCELO COELHO
Da Equipe de Articulistas

Quem dirige automóvel sabe que o espelhinho retrovisor é uma coisa muito útil. Para o escritor Italo Calvino, entretanto, trata-se de invenção bem mais importante, podendo ser considerado uma verdadeira revolução na história da humanidade.

"O homem tem sofrido sempre da falta de um olho na nuca, e sua atitude cognitiva só pode ser problemática, porque ele nunca estará seguro do que exista às suas costas." O espelhinho do carro teria dissipado esta angústia.

Meio a sério, meio brincando, Calvino prossegue seu raciocínio. O motorista consegue, graças a esse modesto invento, ver a paisagem que se descortina atrás dele, ao mesmo tempo em que olha o que está à sua frente, "sem o obstáculo da imagem de si mesmo, como se ele fosse só um olho suspenso sobre a totalidade do mundo".

Essas considerações, inspiradas por um poema de Eugênio Montale, constam do livro de Calvino recém-editado pela Companhia das Letras ("Por Que Ler os Clássicos", 279 págs.). Não valem muita coisa, certamente. Mas a imagem do espelhinho talvez sirva para simbolizar a própria atitude do autor, neste adorável passeio pela história da literatura que ele nos propõe.

O livro é composto de uns 35 ensaios curtos, que analisam desde Homero e Ovídio até Hemingway e Borges, passando por Ariosto, Galileu, Diderot e Stendhal.

O que é clássico

O primeiro ensaio, que dá título ao livro, procura definir o que é, afinal, um "clássico" literário. Clássico, escreve Calvino, é o livro de que dizemos "estou relendo..." e nunca "estou lendo". É o livro que, mesmo antes de abrir, sabemos um pouco de sua importância.

Dessas premissas algo banais, Calvino tira conclusões interessantes. Diz que "toda releitura de um clássico é uma leitura de descoberta como a primeira", e que "toda primeira leitura de um clássico é na realidade uma releitura". De modo que os clássicos, por mais que já tenham sido comentados e analisados, são os livros que nunca esgotam sua capacidade de produzir surpresas. E, nesse sentido, são como a vida, são como o universo: inesgotáveis; em sua complexidade, são equivalentes ao mundo, são talismãs do mundo.

"Voltar" aos clássicos, "reler" os clássicos, seria então uma atitude bastante complexa para Calvino. Assim como o motorista, quando olha pelo espelho retrovisor, não pode deixar de estar atento aos carros que estão à sua frente, o leitor dos clássicos não exclui, de sua leitura retrospectiva, a realidade imediata e o caminho que já percorreu.

Ao mesmo tempo, aquilo que estamos vendo pelo espelho retrovisor não é a nossa imagem, mas um mundo autônomo, no qual não estamos refletidos; é algo que subsiste por si próprio.

Tome-se a apresentação que Calvino faz da "Odisséia" de Homero. Como se sabe, o poema narra a volta de Ulisses à sua terra natal. Mas, lembra Calvino, não se trata apenas disso. Há muitas "Odisséias" dentro da "Odisséia". Não só porque outras aventuras entrecruzam as do herói, mas também porque a própria história de Ulisses aparece narrada, evocada, reescrita no decorrer da epopéia.

A medida que Calvino vai destacando estes aspectos do livro de Homero, ficamos com uma impressão suplementar: a de que toda leitura dos clássicos é também, como a de Ulisses, uma luta contra o esquecimento, que todo leitor das histórias de Ulisses pode ser, ele próprio, um Ulisses voltando à sua Itaca, que é a Odisséia sempre "relida"...

E o que dizer das histórias de cavalaria? Leiamos "Tirant lo Blanc", o primeiro romance ibérico. Tudo começa quando o herói lê um livro, no qual estão escritas todas as regras e segredos para quem quer ser herói de cavalaria. Desde o primeiro romance de cavalaria, então, estamos às voltas com o problema que caracterizaria a vida de Dom Quixote, seu último leitor: tendo lido demais, Dom Quixote se julga cavaleiro andante...

As coisas se complicam, pois no livro de Cervantes há menções a outro livro, que narra as histórias de Dom Quixote. E o próprio Dom Quixote fica sabendo da existência desse romance.

Paradoxos

Ao longo dos diversos estudos que compõem "Por Que Ler os Clássicos", fica evidente o interesse de Calvino por paradoxos desse tipo. Livros dentro de livros, histórias dentro de histórias, narrativas que se ramificam, curto-circuitos, dobraduras cronológicas, espaços virtuais.

Novamente, voltamos à idéia do espelho retrovisor: cada livro, como a imagem no espelhinho, se apresenta como um universo fechado, ele próprio às voltas consigo mesmo -há Odisséias dentro da "Odisséia", Quixotes no "Quixote"... E cada leitor contemporâneo se arrisca, como os personagens de Ariosto, de Balzac ou de Borges, a perder-se no universo de palavras, de coisas, de tramas composto pelo autor. Todo livro é labirinto, eis a esperança de Calvino. E toda ficção é um jogo, onde cada leitor se arrisca; é protagonista de sua própria aventura.

Essa visão é tributária, sem dúvida, de uma certa frivolidade pós-moderna, onde cada livro seria um espaço utópico no qual nos perdemos, e não nos aprisionamos.

Utopia sem evasão, retorno sem volta, a visita de Calvino aos clássicos é mais perigosa e mais enjoativa do que pode parecer. Enjoativa, porque terminamos reencontrando, não importa em que autor, o mesmo jogo, o mesmo deleite pelos paradoxos temporais, a mesma admissão explícita de que tudo é ficcional e se emaranha num espaço próprio, puramente livresco. Perigosa, porque corremos o risco de não sair nunca dela.

Mas não é por acaso que Calvino se entrega a essa paixão pelo jogo ficcional. Seu estudo sobre Pasternak, escrito na época em que Calvino ainda era comunista, é bastante esclarecedor sob esse aspecto.

Pasternak procurava um "retorno" aos moldes clássicos do romance, do tipo Tolstói. Empreitada anacrônica, para Calvino. "Hoje, uma narrativa verdadeiramente moderna só pode canalizar sua carga poética para o momento em que se vive, valorizando-o como decisivo e infinitamente significante; deve por isso estar 'no presente'..."

Contra a idéia oitocentista de "narrativa", assim, é claro que Calvino prefere uma presentificação, uma imediatidade, ou uma dobra paradoxal no tempo, que o leva a privilegiar os aspectos descritivos de cada escritor (Flaubert, Ponge) ou os paradoxos temporais da narração (Borges); a pulverização dos instantes psicológicos (Stendhal), das vozes dialetais (Gadda), das letras do alfabeto (Galileu), dos focos narrativos (Diderot), mais do que a narrativa, a personagem, o destino, a determinação.

Sua leitura dos clássicos, assim, é típica de um período em que a história parece sem sentido, em que tudo, e especialmente a literatura, parece um jogo; como se a frivolidade fosse a nossa salvação, e como se ser "moderno" fosse, acima de tudo, estar consciente de que o que vemos no espelho retrovisor da história ocidental é um quadro fechado em si mesmo; útil, mas que não nos reflete.

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