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A leitura sem fim

(publicado em 22/08/1999)

Romance de Italo Calvino põe o leitor no centro da cena

RINALDO GAMA
Especial para a Folha

Vai sem dizer que a literatura só se realiza plenamente quando encontra o leitor. No entanto, ao contrário do que seria razoável imaginar, raras vezes ele é chamado à frente da cena ficcional. Publicado na Itália em 1979, traduzido no Brasil em 1982 e agora relançado por aqui em nova tradução, "Se um Viajante numa Noite de Inverno", romance de Italo Calvino (1923-1985), é talvez o mais bem-sucedido esforço de valorização do leitor em uma obra literária.

Isso por uma razão simples. Nesse "hiper-romance", o leitor é simplesmente o protagonista. Tudo se resume ao significado dessa peça fundamental da engrenagem narrativa, espécie de "única realidade" que restaria ao romance depois de concluído o ato de escrevê-lo. Assim, não seria despropositado classificar o livro de Calvino, escritor de língua italiana nascido em Cuba, como uma obra realista. Um realismo, claro, baseado no "fingimento" de que falou Fernando Pessoa.

"Você vai começar a ler o novo romance de Italo Calvino, 'Se um Viajante numa Noite de Inverno'", anuncia o autor logo na primeira linha. A frase, como ocorre com toda grande obra, contém o livro inteiro. O que se lerá dali por diante será isso: inícios de romances. Borgianamente, Calvino --que participou do "Ouvroir de Littérature Potentielle" (Oulipo), grupo de experimentações lítero-matemáticas fundado por Raymond Queneau e do qual fazia parte Georges Perec-- afirmava que "todo livro nasce na presença de outros livros". Por um erro da editora, o exemplar de "Se um Viajante numa Noite de Inverno" do personagem Leitor tem um defeito a partir da página 32, o que o leva a se dirigir à livraria para tentar trocá-lo. Lá ele recebe um novo volume e descobre que a história nada tem a ver com aquela cuja leitura havia iniciado. No final, o Leitor, e o leitor de verdade também, terá começado dez romances --com referências a Plotino, de um colecionador de caleidoscópios--que, por motivos alheios a sua vontade, não conseguirá terminar de ler.

Num século marcado pela metalinguagem nas artes, o metalinguístico "Se um Viajante numa Noite de Inverno" consegue o prodígio de se destacar por pelo menos dois motivos. Em primeiro lugar, porque confunde o leitor real com o personagem Leitor, sem que, por exemplo, o volume que está nas mãos do primeiro apresente o tal defeito na página 32 (embora ele esteja, efetivamente, nela). O outro motivo: apesar da afiada ironia e do irresistível humor com que Calvino desfila tipos de romances, possibilidades de crítica e leitura, para não falar do deboche que reserva a certas atitudes dos círculos acadêmicos e editorais, é evidente que "Se um Viajante numa Noite de Inverno" revela o seu gosto pela reflexão literária. No fundo, ele funciona como um ensaio prático.

Nesse sentido, o romance seria, de certa forma, a versão ficcional do que se convencionou chamar de estética da recepção. Tal corrente --cuja certidão de nascimento é uma conferência de Hans Robert Jauss proferida na Universidade de Constança, Alemanha, no dia 13 de abril de 1967-- empenha-se em deslocar o centro da crítica literária do autor ou do contexto social para o leitor. Como faz o romance de Calvino.

Do mesmo modo que não foram Jauss nem Wolfgang Iser e sua teoria do efeito estético os teóricos que pela primeira vez pensaram no leitor --José Paulo Paes, num texto publicado nesta Folha em 1989, chamava a atenção para o trabalho precursor de Kenneth Burke, nos anos 30--, é óbvio que outros romancistas além de Calvino destacaram os seus receptores (lembre-se de Machado). Entretanto jamais aquela figura capaz de fazer com que um livro deixe a condição de "ser morto" --como uma pedra-- para se transformar num "ser vivo" foi elevada a tamanho grau de importância, satisfatoriamente, numa obra literária.

No fim de "Se um Viajante numa Noite de Inverno", Calvino escreve que, no passado, o sentido último de todos os relatos tinha duas faces: a continuidade da vida e a inevitabilidade da morte. Sem pejo de se apresentar como uma realidade romanesca, "Se um Viajante numa Noite de Inverno" realiza-se no mundo real, transformando, como se disse antes, os leitores --o concreto e o fictício-- num mesmo indivíduo. Isso acaba permitindo que a continuidade da vida se imponha à inevitabilidade da morte. "Minha confiança no futuro da literatura consiste em saber que há coisas que só ela nos pode dar", escreveu Calvino em "Seis Propostas para o Próximo Milênio". Sua obra-prima é a maior prova de que ele estava certo.

Rinaldo Gama é professor de jornalismo da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), coordenador do Instituto Moreira Salles e autor de "O Guardador de Signos" (Perspectiva/IMS).

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