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21. As Cidades Invisíveis - Textos publicados na Folha

Leveza do escritor Italo Calvino domina a coletânea

(publicado em 21/07/2001)

RINALDO GAMA
Especial para a Folha

Logo no início de "Leveza", primeira das seis conferências que deveria fazer na Universidade de Harvard (EUA), Italo Calvino observava: "Depois de haver escrito ficção por 40 anos, chegou o momento de buscar uma definição global de meu trabalho: no mais das vezes, minha intervenção se traduziu por uma subtração do peso; esforcei-me por retirar peso, ora às figuras humanas, ora aos corpos celestes, ora às cidades; esforcei-me sobretudo por tirar peso à estrutura da narrativa e à linguagem".

Calvino, nascido em 1923 em Santiago de Las Vegas, Cuba, e radicado na Itália, morreria em 85, antes de apresentar "Leveza" e as demais conferências (reunidas aqui no volume "Seis Propostas para o Próximo Milênio").

Assim como "Seis Propostas", "Um General na Biblioteca" é uma obra póstuma, editada pela viúva do autor, Esther Judith Singer Calvino. Nele aparecem 32 narrativas --que até o lançamento na Itália, em 93, jamais haviam saído em livro ou permaneciam inéditas-- escritas entre 1943 e 84.

Tamanha cobertura no tempo, no entanto, não autorizaria a classificá-lo como uma súmula da produção de Calvino. O que faz de "Um General" uma espécie de cartão de visitas do escritor é a tal leveza que Calvino reconhecia como sua marca mais singular e que domina a coletânea.

Esclareça-se que leveza não se confunde com superficialidade. "Quero dizer [com esse conceito] que preciso mudar de ponto de observação, que preciso considerar o mundo sob uma outra ótica", explicou o ficcionista naquela planejada conferência.

Sua atenção para o embate peso versus leveza foi despertada no início da carreira. Oriundo da Resistência, Calvino engajou-se no movimento neo-realista, que buscava reatar os laços entre arte e sociedade.

"O dever de representar nossa época era um imperativo categórico para todo jovem escritor", testemunha. Contudo, ele se deu conta de que "entre os fatos da vida e um estilo que eu desejava ágil, havia uma diferença que eu tinha dificuldade em superar". Para conseguir isso, o ficcionista cultivaria a leveza, investindo em duas frentes: na fábula (transformada, em muitas oportunidades, em alegoria fantástica) e no humor (baseado na ironia).

Ambas facetas da leveza encontram em "Um General" textos paradigmáticos. A primeira parte da obra é dominada por apólogos --não por acaso, pois contém narrativas do período 1943-58, isto é, dos dias de guerra até a fase imediatamente posterior à saída de Calvino do Partido Comunista Italiano (abandonado em 1957, após 13 anos de filiação).

Em 1943, ele assinalava: "O apólogo nasce em tempos de opressão. Quando o homem não pode dar forma clara a seu pensamento, exprime-o em fábulas".

Alguns desses contos presentes em "Um General" se destacam. "Quem se Contenta" (43), por exemplo, narra a história de um país "em que tudo era proibido", menos o jogo de bilharda; quando a proibição é suspensa, os habitantes preferem continuar só jogando bilharda.

Datada de 1953, a narrativa que nomeia a edição brasileira é extraordinária. Suspeitando que os livros contivessem "opiniões contrárias" a eles, militares invadem uma biblioteca, tomados pelo furor da censura. Aos poucos, porém, rendem-se ao que lêem.

A ironia também aparece na primeira parte de "Um General", mas sua presença acentua-se na segunda, que traz textos escritos entre 1968 e 84, vários sob encomenda. "O Homem de Neanderthal" (75) é talvez o conto mais divertido do ficcionista, que nele debocha de chavões históricos, psicanalíticos e sociológicos.

Nem o Calvino adepto da literatura experimental do Oulipo está fora de "Um General". "O Incêndio da Casa Abominável" (73), escrito para a IBM, foi, segundo sua viúva, "destinado mentalmente" ao grupo de Raymond Queneau.

Que leveza pode haver numa narrativa como essa, pautada pelas infinitas possibilidades de operações em um computador? Ou no desconcertante "A Memória do Mundo" (68)? Ou ainda numa história ("A Decapitação dos Chefes", 69) que trata de um sistema político baseado no assassinato ritual e regular de seus dirigentes?

É preciso estar leve para enfrentar o insuportável peso de ser, parece ensinar o livro.

"Para decepar a cabeça da Medusa sem se deixar petrificar, Perseu se sustenta sobre o que há de mais leve, as nuvens e o vento", lembra Calvino, na conferência que não fez, aliviado que foi de todos os pesos --elevando-se a um dos pontos mais altos da literatura do século 20.

Rinaldo Gama é mestre em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP, editor-executivo dos "Cadernos de Literatura Brasileira" do IMS e autor de "O Guardador de Signos: Caeiro em Pessoa" (Perspectiva/ IMS, 95).

Um General na Biblioteca
Prima Che Tu Dica "Pronto"
Bom
Autor: Italo Calvino
Tradução: Rosa Freire d'Aguiar
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 24 (250 págs.)

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Lançado: 21/12


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