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25. No Caminho de Swann

Proust entra em cena

(publicado em 22/06/1997)

Duas novelas de juventude do francês Marcel Proust são lançadas no Brasil

LEDA TENÓRIO DA MOTTA
especial para a Folha

Apesar da juventude do autor, o livro é velho como o mundo --"vieux de la vieillesse du monde"--, escrevia Anatole France, em 1896, a título de elogio, em seu prefácio a "Les Plaisirs et les Jours'' (''Os Prazeres e os Dias''), de Marcel Proust.

Era só uma frase de efeito. Na verdade, o então influente homem de letras --uma das chaves mais certeiras do escritor Bergotte, que terá a espessura de seu estilo justamente comentada em "À la Recherche du Temps Perdu'' (''Em Busca do Tempo Perdido'')-- não estava nem um pouco interessado no principiante que assim apadrinhava. Só para atender, aliás, às instâncias de um drama tão influente quanto, uma dessas donas de salão "fin de siècle" em meio às quais evolui, como que distraidamente, o romancista do tempo perdido. Por ora envolvido com esse pequeno volume cujo título parodia Hesíodo, trocando trabalhos por prazeres.

O fato é que, pactuando com jogos de sociedade que o novato também saberá transformar, oportunamente, em matéria ficcional, France, que só queria agradar, erra por completo o golpe. Pois já temos aí, nesse "mélange" de textos que compõem o primeiro livro de Proust --o primeiro que ele escreve e que publica e, aliás, o único que publica antes da "Recherche", até porque não encontra quem o edite--, todos os sinais da passagem do desejo a sintoma mórbido, que hoje reconhecemos como quintessencialmente proustiana.

Já temos aí a fabricação do "outro" como objeto que escapa, o ciúme como corolário dessa escapada e a violência de querer aprisionar como corolário desse corolário. Já temos aí a circularidade, dublada na estrutura da obra-prima final, que remete o sujeito enclausurado a si mesmo, enquanto artífice do seu próprio inferno. Já temos aí, em suma, este protagonista central da condição moderna: o sujeito. A desfiar a mesma história interminável de sempre, que começa com o beijo faltante de mamãe.

Ora, se a onipresença de um narrador em primeira pessoa, posto em solilóquio, às voltas com o prazer perverso de contar com um rival para seguir desejando, fez pensar, por um bom momento, que faltava assunto ao autor da "Recherche", não é de estranhar que o pequeno álbum dos 25 anos de Proust goze, em seu tempo, de idêntica má fama. Nem que ele se veja recepcionado, ainda hoje, fora do círculo dos especialistas, como uma espécie de rascunho da suma proustiana. E é por isso que é tão oportuna e tão bem-vinda a tradução de "L'Indiférent'' e ''La Fin de la Jalousie" (''O Indiferente'' e ''O Fim do Ciúme'').

Duas novelas por assim dizer proto-históricas, ambas do mesmo ano de 1896. A primeira suprimida da coletânea em questão, para figurar numa revista de época, "La Vie Contemporaine", contingência responsável pelo seu desaparecimento, século adentro; a segunda, parte integrante do volume que vai parar nas mãos de Anatole France. Elas trazem de volta o dramático começo do mais importante escritor do século, como alguns não relutam em considerar Proust. E permitem repensar a entrada em cena. É exatamente o que faz, com tal escolha de repertório, o tradutor, Sérgio Coelho.

E mencione-se ainda que a estréia de Proust não é a única em jogo no seu trabalho, que reivindica um modelo, na cuidadosa apresentação crítica, em que se instala uma outra cena inaugural. Aquela no centro da qual vamos encontrar um ilustre proustiano da primeira hora, que estréia com a revista "Clima". Um jovem que, há mais de 50 anos, em 1941, publicava no primeiro número da revista o enorme painel intitulado "Marcel Proust e a Nossa Época".

Guia esse mais feliz que o velho France, que reconhece a enorme novidade do que tem pela frente. Sem recuar, leitor de Freud que também já é, nesses idos, diante de temas como a homossexualidade, por exemplo, que outros continuam evocando, no mesmo período, com meias palavras. Trata-se do colaborador de "Clima" por nome Ruy Coelho. Que, ficamos sabendo, já no fim da apresentação, nesse ponto convertida em homenagem, é o pai do tradutor!

Também por isso as duas esquecidas novelas, tão longe do grande estilo proustiano final, mas tão proustianas nas suas obsessões ódio-amorosas, se recomendam.

Leda Tenório da Motta é crítica literária, tradutora e professora de literatura francesa. Autora de ''Catedral em Obras'' (Iluminuras) e ''Lições de Literatura Francesa'' (Imago).

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