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26. Breve Romance de Sonho
Arthur Schnitzler arma seu jogo duplo em novela
(publicado em 10/11/2001)
MARCELO COELHO colunista da Folha
É DIFÍCIL falar do escritor vienense Arthur Schnitzler (1862-1931) sem lembrar o nome de Sigmund Freud (1856-1939). O claro e útil prefácio desse livro vai direto ao ponto. "Os dois foram médicos e intelectuais judeus renomados; inclusive seu desenvolvimento profissional foi parecido: os dois estudaram hipnose e foram alunos do médico Theodor Meynert. (...) Freud jogava cartas com o irmão de Schnitzler e foi operado pelo cunhado do escritor. Ambos foram acusados de imoralidade e pornografia, e suas obras surgiram aproximadamente na mesma época."
Apesar disso --continuo reproduzindo o prefácio de Marcelo Backes--, os dois se encontraram poucas vezes. Schnitzler disse certa vez que se sentia "irmão gêmeo" de Freud. E este lhe escreveria: "Penso que tenho evitado o contato convosco devido a uma espécie de medo do duplo".
"Aurora" é uma novela escrita em 1926, ano em que Schnitzler e Freud se encontraram pela última vez. Não parece haver muito de "freudiano", contudo, nessa história em que a paixão do jogo toma conta de um jovem e indeciso oficial do Exército austríaco.
Pelo menos, aqui não fica muito explícita a presença do desejo sexual como fundamento para a ação dos personagens, característica que tornara outras obras de Schnitzler motivo de considerável escândalo na época.
Na rápida e fascinante história do tenente Willi Kasda, predomina uma psicologia "realista", até "machadiana". O autor desvela sem crueza, mas de forma impiedosa, não as profundidades do inconsciente de seu personagem, mas sim os mecanismos nada confiáveis do seu caráter.
O livro começa como uma peça de teatro. Acordam Willi bem cedo. Um amigo bate à porta. É Otto von Bogner, que está em apuros: precisa de mil florins para cobrir um desfalque. Willi não tem esse dinheiro. Poderia pedir um empréstimo, sugere Otto. Willi não tinha um tio rico? Não, nem pensar: o tio Robert cortara-lhe a mesada, tornou-se um recluso.
Há outra possibilidade: tentar a sorte no jogo. Willi hesita. É verdade que frequenta uma roda de carteado em que um homem muito rico, o cônsul Schnabel, vive perdendo dinheiro.
A narração, de início agitada e teatral, aos poucos se adensa, e o leitor acompanhará com aflição a série de decisões contraditórias em que Willi se emaranha. Por vários momentos, ele se esquece da desgraça do amigo; o respeito pela palavra --palavra de oficial do Exército austríaco, o que em tese não era pouca coisa-- logo cede ao egoísmo; generosidade e degradação se alternam, até que...
Até que começa a parte mais interessante, mais misteriosa da novela; a que mais valeria a pena comentar --mas não é permitido ao resenhista contar a história até o final. "Aurora" já seria um livro excelente se se limitasse a traçar, com notável economia de meios, a psicologia do jogador, seus entusiasmos, remorsos e tentações. Esta novela vai muito além, contudo, de qualquer ensinamento moral que possa conter.
Na verdade, "Aurora" opera num registro mais sutil. Ao fazer com que o leitor torça pelo sucesso do débil personagem Willi, Schnitzler o tempo todo "esconde o jogo". É em figuras mais antipáticas, como o cônsul Schnabel, o tio Robert e sua gélida mulher Leopoldine --aparição tardia e formidável na novela--, que encontramos os verdadeiros protagonistas da história.
Sobre eles, entretanto, sabemos pouco. Um contrato sadomasoquista rege o relacionamento de Robert e Leopoldine; a pura lógica comercial, distante dos valores aristocráticos do oficialato austríaco, impõe ao cônsul um comportamento taciturno e cínico.
Trata-se de notar o conflito entre o superado código de honra do tenente --onde faltar à palavra é o maior crime-- e um ambiente em que o valor de uma pessoa se mede apenas pelo dinheiro que possui. E são justamente os representantes desse ambiente os que, no fim, se encarregam de dar as lições de moral. Esse conflito poderia redundar num dramalhão, se o senso de ironia de Schnitzler não estivesse o tempo inteiro a relativizar a trama e desorientar nossas simpatias.
A história se desenvolve como se cumprisse engenhosamente uma profecia de que não havíamos sido informados no início do livro; coisas típicas de uma comédia --o velhote traído pela mulher jovem, o avarento que cai no ridículo, o esconde-esconde, o mal-entendido-- giram ao inverso, num quiproquó sombrio.
O que teria Freud a ver com isso tudo? Pode-se arriscar uma especulação. Quando vemos a desgraça de Otto repetir-se no caso de Willi, quando vemos o papel simétrico do cônsul e do velho tio Robert na história, quando vemos uma mesma personagem feminina desdobrar-se em dama austera e moça corrompida, talvez seja possível concluir que o livro inteiro está dominado pela idéia do "duplo". É como se, à distância, e por meio da ficção, agora fosse a vez de Schnitzler exorcizar o medo que, como vimos, Freud tinha de identificar-se com ele.
Aurora
Spiel im Morgengrauen
Ótimo
Autor: Arthur Schnitzler
Tradução, prefácio e notas: Marcelo Backes
Editora: Boitempo
Quanto: R$ 25 (151 págs.)
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