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27. O Jovem Törless
Musil ataca baixo nível do leitor e o excesso de gênios
(publicado em 07/01/1996)
ROBERT MUSIL
É comum dizer-se hoje que os livros já não têm grandeza e que os escritores já não sabem mais escrever coisas grandiosas. Talvez seja um fato inconteste; mas, que tal se invertêssemos a frase e comprovássemos a hipótese de que os leitores alemães já não sabem mais ler? Será que quanto mais se lê, sobretudo quando se trata realmente de obras literárias, mais cresce, em proporção geométrica, uma resistência por ora inexplicável que outra coisa não é senão descontentamento? Na verdade, é como se o portão pelo qual haveria de entrar o livro sofresse de uma irritação patológica e se mantivesse estreitamente cerrado. Muitas pessoas, hoje, quando lêem um livro, não se sentem num estado natural, e sim submetidas a uma operação na qual não confiam.
Investigando-se a origem e escutando-se as conversas a esse respeito, descobre-se que o leitor --o bom leitor, que não deixa passar nenhum livro significativo e que é capaz de mencionar o gênio do dia e da época!--, descobre-se então que mesmo esse leitor está disposto a fazer concessões, já que vive tropeçando em forte oposição; pensando bem, talvez o gênio que desfrutava de seu favor não seja verdadeiramente um gênio ou, quem sabe, não existam mais gênios de verdade atualmente. Mas essa descoberta não se limita de modo algum à literatura. Também a medicina errou de caminho, a matemática extraviou-se, a filosofia perdeu o conceito de sua atividade. De todos os cantos e lugares, é isso que o leigo aprende hoje a respeito dos especialistas. E, já que cada especialista é também um leigo em centenas de outras especialidades, o resultado é uma soma muito grande de opiniões prejudiciais.
Ora, é difícil, por certo, dizer com precisão de centímetros qual a grandeza dos poetas, pensadores e investigadores existentes; mas não devemos agir desse modo, pois logo verificamos que isso se assemelha, em sua estrutura, ao popular e antigo jogo infantil Schwarzer Peter (1). Não são os poetas que se acham a si mesmos imperfeitos, mas sim os investigadores, pensadores, técnicos e outros luminares, e esses procedem da mesma forma. Numa palavra: esse pessimismo cultural, que a todos parece oprimir, costuma ocorrer fundamentalmente "por conta alheia"; resumindo, laconicamente: o homem, consumidor de cultura, está deslealmente insatisfeito com o homem, produtor de cultura.
Mas tudo isso se coaduna enigmaticamente com seu oposto: pois nem tão raro quanto ouvir a queixa de que não há mais gênios de verdade é a observação que se interpõe entre nós de que só existem gênios. Folheando-se por um instante as notícias e críticas de revistas e jornais, ficamos verdadeiramente assombrados com o número de profetas espirituais, de mestres supremos, profundos e grandiosos que surgem no espaço de poucos meses; e com que frequência, no decorrer de tão curto espaço de tempo, a nação é presenteada com um "afinal um verdadeiro poeta mais uma vez"; e com que frequência são escritos a mais bela história de animais ou o melhor romance dos últimos dez anos. Ao cabo de poucas semanas ninguém mais se recorda dessa impressão tão inesquecível.
A isso vem unir-se uma segunda observação: as origens de quase todos esses juízos localizam-se em círculos que estão hermética e reciprocamente fechados. Esses círculos são constituídos por editoras, autores, críticos, jornais, leitores e sucessos que se inter-relacionam, sem ultrapassar tais limites; e todos esses círculos e circulozinhos, cujas dimensões parecem corresponder à de uma paixão ou à de um partido político, têm seus gênios ou, pelo menos, seu "Senhor Ninguém", com o predicado de "ele-e-ninguém-mais". Em torno das figuras mais bem-sucedidas se forma, é certo, um círculo oriundo de todos os círculos, mas que não haverá de enganar a quem quer que seja; parece como se a coisa verdadeiramente importante não pudesse passar despercebida, e que a nação soubesse como acolhê-la, mas na verdade o sucesso congregado tem pais totalmente desunidos: pois não é tudo que se compartilha com todos o que causa admiração, mas sim aquilo que dá a cada um o que é seu. E como a fama é uma fusão, também os famosos formam uma sociedade fundida.
Se não limitamos essa fusão à literatura, a imagem retratada como grupo torna-se portanto avassaladora. Pois o círculo, a agremiação, a escola ou o sucesso alardeado em torno desse ou daquele que exerce uma ocupação reconhecidamente intelectual não significam nada comparado com o sem-número de seitas que aguardam a purificação do espírito através da influência exercida por uma refeição à base de cerejas, pelo teatro da vila colonial, pela ginástica musical, pela eubiótica ou por qualquer uma das milhares de singularidades existentes. É impossível declinar a quantidade de Romas que existem, cada qual com seu papa cujo nome o não-iniciado jamais ouviu, enquanto os iniciados esperam dele a salvação do mundo. Toda a Alemanha está tomada dessas corporações espirituais. E da grande Alemanha, onde pesquisadores famosos só podem viver do ensino, e primorosos poetas, apenas da venda de folhetins de casa em casa, dessa Alemanha aflui um número incontável de semidoidos, cuja participação no desenrolar de seus caprichos dá-se através da impressão de livros e da criação de revistas. Daí porque, nos últimos tempos, têm aparecido na Alemanha, antes de seu empobrecimento, mais de mil revistas novas e mais de 30 mil livros por ano, cifra altaneira tida como de importância intelectual.
Infelizmente devemos supor, com larga segurança, que se trata de um número descoberto não em seu devido tempo, de um delírio por relações que se alastram; dos milhares de grupelhos que se confundem, cada um deles se agarra à vida com uma idéia fixa, de tal modo que em pouco tempo não nos espantaremos mais se uma autêntico paranóico não puder resistir a participar de um desses concursos de aficionados.
NOTA
1. Jogo de cartas equivalente ao ''Mico Preto'' (N.T.)
Ensaio do livro ''Obra Póstuma Publicada em Vida'', de Robert Musil, a ser lançado pela editora Nova Alexandria.
Tradução de NICOLINO DE SIMONE NETO
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