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Por que ler os contemporâneos
(01/06/2003)
JOSÉ GERALDO COUTO
da Folha de S.Paulo
Na última parte do século 19, graças a escritores como Flaubert, Dostoiévski, Henry James e Machado de Assis, o leitor descobriu que tinha uma vida interior e que mesmo o mais cinzento cotidiano de um obscuro escrivão ou de uma discreta esposa burguesa escondia abismos insondáveis.
No século 20, outros autores igualmente grandes incitaram o leitor a explorar esses abismos. Ensinaram-no também a não confiar piamente nas histórias que lhe eram contadas. O próprio narrador, seja em primeira ou terceira pessoa, passou a ser alguém duvidoso e questionável.
Sob a égide de Freud e Einstein --e das perturbadoras noções de inconsciente e de relatividade--, inaugurou-se uma era de incerteza, em que o homem urbano e letrado sentia vacilar o chão de suas antigas (e confortadoras) convicções.
Alguns dos maiores escritores da primeira metade do século passado enveredaram corajosamente, cada um à sua maneira, por esse terreno movediço que é a mente do indivíduo urbano contemporâneo.
Um James Joyce, por exemplo, explorou essa mente como um laboratório de linguagem. Os contos de “Dublinenses” dão início a uma experiência que se radicalizaria nos romances “Ulisses” e “Finnegans Wake”: a linguagem não é mais um instrumento neutro e transparente de comunicação de uma realidade dada; é ela, em vez disso, que institui e conforma essa realidade.
Um Marcel Proust, por sua vez, inspirado por filósofos como seu amigo Henri Bergson, usou a própria memória como campo de estudo, aprofundando as investigações sobre as várias camadas que compõem a consciência humana em sua relação com o mundo e com a passagem do tempo.
Em sua estrutura complexa, por trás da profusão de detalhes sobre a vida da alta roda francesa na virada do século 19 para o século 20, os sete romances de “Em Busca do Tempo Perdido”, iniciados com “No Caminho de Swann”, configuram uma espécie de grande épico da subjetividade, se é possível o paradoxo.
Da ênfase joyceana na palavra e na reflexão sobre a linguagem derivaram inúmeras veredas de experimentação formal, de que são exemplos as inquietações poéticas de uma Marguerite Duras e a literatura lúdica e especulativa de um Italo Calvino.
A linhagem intimista, de exploração dos desvãos secretos do indivíduo, que tem em Proust seu expoente --e em Arthur Schnitzler um poderoso precursor--, assume também os mais diversos matizes nas mãos de um Italo Svevo, de um Henry Miller ou de um Vladimir Nabokov.
Ao ler esses autores, o leitor é convidado a encarar suas próprias fobias, neuroses e perversões. Pouco importa se o “caso” diante de seus olhos seja a tentativa de um homem de largar o vício do cigarro, como em “A Consciência de Zeno”, ou o desejo de um quarentão por uma adolescente, como em “Lolita”.
Não é de estranhar que nessa sociedade burguesa avançada, em que a vida interior assume papel de destaque e os papéis sociais passam por uma profunda transformação --incluindo nisso uma redefinição das relações entre os sexos--, desenvolva-se com muita força uma literatura especificamente feminina.
De Virginia Woolf a Marguerite Yourcenar, passando por Simone de Beauvoir, Marguerite Duras e Clarice Lispector, escritoras dos mais variados estilos e procedências exploraram a situação contemporânea pelo olhar da mulher, dialogando literariamente em pé de igualdade com os grandes autores da época.
Entretanto, o século 20 não foi apenas o século de Freud e Einstein, mas também o de Hitler e Stálin; não apenas o da descoberta do inconsciente, mas também o da sociedade tecnocrática de controle do indivíduo e de padronização do comportamento.
Acuado por forças visíveis (a polícia, o exército) e invisíveis (a lei, a burocracia, o mercado), o homem se sente um estranho em sua própria cidade, em doloroso e/ou cômico desacordo com a engrenagem do mundo.
Esse estado de alienação essencial e permanente, em que o sujeito se esfacela no choque com instituições que não compreende e nas quais não se reconhece, encontra sua tradução mais perfeita, obviamente, em Franz Kafka, sobretudo em seu “O Processo”.
Não por acaso é um estado análogo ao do pesadelo, com seu sentimento de impotência e suas ameaças impalpáveis.
A mesma preocupação com o mecanismo perverso do mundo encontrou ao longo do século outras formas de representação em autores tão díspares como George Orwell, Bertolt Brecht, José Saramago e Graciliano Ramos. Da fábula do primeiro ao ascético e exigente realismo deste último, o motivo central é sempre a dificuldade de entendimento entre o indivíduo e a sociedade.
Graciliano e Saramago, aliás, podem ser vistos sob outra luz: a dos autores da periferia do mundo capitalista avançado que, por conta dessa própria circunstância, enriqueceram a literatura universal com uma visão oblíqua ou excêntrica (no sentido literal) da sociedade contemporânea.
Entrariam nessa vertente também o colombiano García Márquez, o peruano Mario Vargas Llosa, o mexicano Juan Rulfo e os brasileiros Guimarães Rosa, João Ubaldo Ribeiro e Rubem Fonseca. Mas cada um a seu modo, claro: entre as alegorias de um Saramago, o fantástico de um García Márquez e o realismo brutal de um Rubem Fonseca as distâncias são enormes.
Tão interessante quanto essas vozes que vêem da periferia do planeta é o interesse recorrente da literatura dos grandes centros pelas culturas situadas fora do eixo Europa-América do Norte, sobretudo pelas antigas filosofias orientais, presentes tanto no “Sidarta” do alemão Hermann Hesse como no “Fio da Navalha” do inglês Somerset Maugham.
Por fim, a literatura do século 20 soube também retrabalhar criticamente a herança literária dos séculos anteriores, reciclando e misturando gêneros, glosando estilos, parodiando obras. Essa atitude pós-moderna assumiu feições bastante distintas entre si nos romances de um Umberto Eco ou nos contos de um Borges.
Numa época como a nossa, em que os interesses de mercado tantas vezes predominam sobre o valor estético e cultural das obras de arte e comunicação, é muito saudável poder visitar e revisitar alguns dos livros que ampliaram o conhecimento e a sensibilidade do século 20.
Um século que não conseguimos abordar satisfatoriamente sem recorrer a expressões como “kafkiano”, “joyceano” e “proustiano” --não por acaso, as três grandes matrizes da prosa literária contemporânea.
Se a literatura de mero entretenimento tende a manter o leitor na inércia e no automatismo, a grande literatura é aquela que o inquieta e o obriga a pensar sobre o mundo e sobre si próprio. E, além disso, dá muito prazer.
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