Notícias
Romance de Saramago é o próximo título da Biblioteca Folha
(22/06/2003)
SUSANI SILVEIRA LEMOS FRANÇA
da Folha de S.Paulo
O escritor português José Saramago é hoje, a despeito de uma certa "rabugice" que demonstra com gosto tanto nas suas atuações públicas quanto nos seus romances, senão o mais notável, por certo o mais notado dos escritores de língua portuguesa. A começar pela condição de único entre os autores dessa língua a ter recebido o Prêmio Nobel de Literatura.
Autor de mais de 15 livros, Saramago parece, contudo, como os grandes escritores, movido por um propósito quase invariável: o de interromper o ciclo irrefletido das verdades estabelecidas pelo uso.
Tal proposta literária, quase sempre relacionada com o posicionamento político de esquerda abertamente assumido por ele, tem-lhe valido acusações de dogmatismo e até maniqueísmo, mas sem comprometer o reconhecimento da sua criatividade para encontrar soluções ficcionais que desnaturalizem as tais "verdades" convencionadas.
A história dos grandes homens e acontecimentos tem sido um dos alvos privilegiados desse autor que, valendo-se do potencial da ficção, em vários romances, especialmente em "História do Cerco de Lisboa", se dispõe a lançar luz sobre supostos aspectos esquecidos pelos historiadores e, consequentemente, pelos seus leitores.
No romance que o fez célebre, por exemplo, o "Memorial do Convento", Saramago ocupa-se em desviar o foco da monumentalidade que caracteriza o convento de Mafra, orgulho da nação portuguesa, para as ambições megalomaníacas do rei que o mandou construir e para o sacrifício daqueles que tiveram de trabalhar para concretizar seu projeto.
Já naquele que é um dos seus livros mais polêmicos, o "Evangelho Segundo Jesus Cristo", um dos dogmas fundadores do cristianismo, o heroísmo de Cristo, é sugerido como involuntário, na medida em que o enviado pela providência para se sacrificar pela humanidade pondera o custo e o benefício do seu sacrifício.
É, porém, no romance "História do Cerco de Lisboa", ora publicado pela Biblioteca Folha, que se torna mais evidente não só o empenho de Saramago em desmontar a história estabelecida em busca de aspectos apagados ou desprezados, mas também em pôr em causa a propalada identificação entre história e verdade.
Neste livro, o ato deliberado de um revisor do século 20 para alterar uma história sobre o século 12 que lhe coube rever abre espaço para uma reflexão sobre os limites e as especificidades da escrita da história, principalmente sobre o seu poder de consolidar certas "verdades".
A problemática vem à tona quando o pacato Raimundo Silva, relendo partes de um texto que revisava sobre o famoso cerco de Lisboa, ocorrido em 1147, decide cometer uma transgressão. Raimundo introduz um "não" numa frase afirmativa, negando assim o auxílio dos cruzados a d. Afonso Henriques, o primeiro rei português, na sua conquista de Lisboa, há muito ocupada pelos mouros.
A idéia da transgressão nasce quando esse revisor começa a questionar se o discurso atribuído ao fundador do reino de Portugal, por um historiador também do século 20, não seria emasiadamente elaborado para a boca daquele "rei, sem prendas, ele, de clérigo".
A inversão promovida por Raimundo, embora inconsequente e de efeitos facilmente reparáveis por uma errata, abre espaço no romance para questionamentos que chegam até aos cronistas medievais que primeiramente registraram a história do cerco. E, mais, ela coloca a nu o forte elo entre a história e a ficção, ambas sujeitas às vicissitudes da escrita.
Tal dessacralização da história, não bastasse, vem ainda acompanhada da dessacralização de personagens feitos por ela heróis, como o próprio rei Afonso Henriques e o "milagreiro" cavaleiro Henrique, agora revelados em sua falibilidade humana.
Saramago, entretanto, como escritor de não pouca monta, ao refletir sobre a espinhosa questão das aproximações entre a história e a ficção, deixa de lado as respostas e prefere conduzir o leitor pelo fértil caminho das indagações.
Susani Silveira Lemos França é doutora em cultura portuguesa pela Universidade de Lisboa e professora visitante do Programa de Pós-Graduação em História da Unesp-Franca.
|