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"História do Cerco de Lisboa" evidencia "nãos" de Saramago

(28/06/2003)

CASSIANO ELEK MACHADO
da Folha de S.Paulo

José Saramago é um homem que diz não. Sua persona pública já pediu bastas de todas as ordens. Chegou, em abril deste ano, até a um barulhento não ao ex-aliado Fidel. "Discordar é um direito que se encontra e se encontrará inscrito com tinta invisível em todas as declarações de direitos humanos passadas, presentes e futuras."

Na literatura não é diferente. Como marcou a ensaísta Leyla Perrone-Moisés, na Folha, em 1998, "se bem observarmos, veremos que todos os romances de Saramago são um "não" oposto à infelicidade histórica do homem". Em "Memorial do Convento" ele apresenta o não à opressão, monárquica ou religiosa. "A Jangada de Pedra" pode ser visto como o não à Comunidade Européia. Em "O Evangelho segundo Jesus Cristo", nega um Deus que sacrifica seu próprio filho e deixa que, em seu nome, corram rios de sangue. Por aí vai.

Mas não é nenhum desses o mais famoso "não" do Nobel de Literatura de 1998. Em "História do Cerco de Lisboa", que a Biblioteca Folha leva às bancas amanhã, o escritor português suspende essa palavra ao quase status de protagonista.

Publicado originalmente em 1989, esse sexto romance de Saramago entrelaça duas narrativas. Em alguns momentos, acompanhamos o cinquentão Raimundo Benvindo Silva, que trabalha como revisor em uma editora, na Lisboa contemporânea. Em outros instantes, temos a mesma cidade em 1147, quando foi tomada pelos portugueses, com ajuda dos cruzados, das mãos dos mouros.

As histórias confluem quando Silva, revisor de currículo irretocável, resolve injustificadamente mudar uma frase de um livro que ele corrigia, livro esse chamado "História do Cerco de Lisboa".

Onde lia-se que os participantes das Cruzadas auxiliariam os portugueses nessa batalha ele antepõe, com sua esferográfica, a palavra "não". "Agora o que o livro passou a dizer é que os cruzados Não auxiliarão os portugueses a conquistar Lisboa, assim está escrito e portanto passou a ser verdade", escreve Saramago.

O singelo "não" que o revisor encasqueta de colocar nessa história não passa batido. Treze dias depois, sua "fraude" é descoberta. Seus chefes, além de providenciarem uma errata, contratam uma chefe para Raimundo. Maria Sara, a revisora-chefe, lança então um desafio a seu subordinado: que escreva ele mesmo uma história do cerco de Lisboa em que o rei português Afonso Henriques resolva todos os seus problemas com os 12 mil homens que eram de sua guarda.

E nessa toada começam duas histórias cruzadas de amor. "Os dois cercos, o real e o fictício, se confundem aqui com um cerco amoroso, que se vai fechando sobre o velho revisor e sua jovem editora, como se fecha, 800 imaginados anos antes, sobre um soldado português e a viúva de um cruzado", crava o articulista da Folha Arthur Nestrovski, na contracapa do livro.

A maestria com que Saramago trança essas realidades e invenções, marca de boa parte das grandes obras que ele levantou do chão, como a magistral "O Ano da Morte de Ricardo Reis", fez com que "Cerco" fosse saudado por alguns críticos como "o livro que reinventou o romance histórico".

Como escreveu o crítico João Alexandre Barbosa no Mais! em 1998, "na esteira do que há de mais inovador na narrativa moderna e pós-moderna, o romance de Saramago é uma prolongada discussão acerca das relações possíveis entre a representação da realidade pela linguagem da narrativa e as inserções operadas pela imaginação ficcional".

Ou como registra o próprio escriba do Alentejo em seu livro "Manual de Pintura e Caligrafia", de 1977, "às vezes, contamos certo, mas o acerto é muito maior quando inventamos. A invenção não pode ser confrontada com a realidade, logo, tem mais probabilidade de ser exacta".

Viver não é preciso, parece soprar o homem que diz não.

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