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"O Grande Gatsby" fica entre futilidade e tragédia

(29/06/2003)

CRISTOVÃO TEZZA
especial para a Folha

"O Grande Gatsby", de F. Scott Fitzgerald, escrito há mais de 70 anos, é desses livros raros que, ao mesmo tempo em que sintetizam o imaginário marcante de uma era, no caso os anos 1920 de uns Estados Unidos pujantes, otimistas e ricos, mantêm teimosamente a sua vitalidade. É como a representação do desejo de um "orgiástico futuro", nas palavras do narrador, que ano após ano insiste em se afastar de nós.

O argumento do romance parece simples: Jay Gatsby, um misterioso milionário, dá festas suntuosas para uma horda de visitantes que vive desembarcando alegremente em sua casa, em Long Island, Nova York, mesmo sem saber direito quem ele é. De sua janela, Gatsby contempla do outro lado da baía as luzes da residência de seu amor de juventude, Daisy, agora casada com um tosco mas rico Tom Buchanan, e que ele pretende reconquistar.

É um mundo de pesada futilidade, sem eixo de valor além da "angustiante percepção do dinheiro". E os valores, quando transparecem, revelam um subterrâneo sinistro: "Compete a nós, que pertencemos à raça dominante, estar atentos; do contrário, outras raças dominarão o mundo", diz o marido de Daisy. E completa: "E o que é mais, produzimos todas as coisas que fazem a civilização".

Entre essas coisas civilizadas, está a amante de Tom, Myrtle Wilson, mulher de um pobre garagista que será um dos pivôs do romance; ou a própria Daisy, que num momento dirá, com "eletrizante desdém": "Santo Deus, como sou sofisticada!". Ou ainda o automóvel de Gatsby, "cintilante de metais" que refletiam "uma dúzia de sóis".

A história de Gatsby, afinal um pé-rapado que enriquece pela via do crime, subitamente se transforma em tragédia, mas, tiradas as máscaras, é como se a tragédia fosse o tempo todo a verdadeira natureza daquele mundo _como se houvesse uma incompatibilidade de alma entre o projeto americano de felicidade e o material angustiantemente precário de que dispõem para construí-lo.

Um dos segredos literários desse belo romance está na escolha do narrador e do ponto de vista: toda a história é contada por um espectador que não participa propriamente do que acontece. O pobretão Nick Carraway, que por acaso aluga uma casinha modesta ao lado da mansão de Gatsby e que é tratado por todo mundo com uma generosidade condescendente, vai contando os fatos ainda sem compreendê-los perfeitamente. Ele se define "como um sujeito de raciocínio lento e cheio de regras interiores que agem como freios". Declarando-se ele próprio uma das poucas "criaturas honestas" que jamais conheceu, Nick não perde sua referência moral, tirada não dos catecismos, mas de uma resistência instintiva a se entregar aos fascínios de Nova York.

Há no livro um sutil (e também clássico) contraste entre uma certa "solidez da província" e aquele mundo novo em que tudo se dissolve no ar, mesmo os enormes olhos desbotados do "Dr. T. J. Eckleburg" de um outdoor em ruínas, que como um deus o contemplava diariamente no caminho para a cidade. É o instinto de Nick, e não a conveniência, por exemplo, que o leva a dizer sinceramente ao contrabandista Gatsby depois que seu plano de reconquista fracassa: "Você é melhor que todos eles!".

A linguagem de Nick não se entrega às certezas, à ênfase, ou à pose do estilo. Há uma insegurança afetiva que acompanha o seu olhar e tateia o mundo em volta, insegurança presente também em sua relação com Jordan Baker, amiga de Daisy, "incuravelmente desonesta", que liga os dois mundos e que ao longo do livro como que propõe ao narrador uma escolha, não exatamente de uma mulher, mas de um valor.

A sutil ironia da narração _são deliciosas as descrições das festas, e algumas enumerações de convidados parodiam uma espécie de genealogia bíblica dos novos ricos_ sempre deixa uma margem de espanto e de encantamento pelo mesmo mundo que recusa, e é essa margem ambígua que garante empatia ao texto.

Em "O Grande Gatsby", tudo nos parece familiar e contemporâneo _um início de século em rápida e bruta mutação, depois de um período de relativa estabilidade e consolidação de valores; e a mudança é tão súbita que, como Nick Carraway, não conseguimos mais nos reconhecer em nada que vemos em torno.

Cristovão Tezza é escritor, autor, entre outros, dos romances "A Suavidade do Vento" e "Breve Espaço Entre Cor e Sombra", todos pela Editora Rocco

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