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Joseph Conrad assinala naufrágio na indiferença

(12/07/2003)

MANUEL DA COSTA PINTO
colunista da Folha

Joseph Conrad (1857-1924) é talvez o último dentre os grandes viajantes da literatura de língua inglesa. Ao lado de Melville e Stevenson, esse polonês naturalizado inglês deu colorações épicas a uma era de comércio marítimo e expansão colonial, transformando sua experiência na Marinha Mercante em fonte para uma obra que insufla na prosa européia "a liberdade das grandes águas do globo", conforme escreve em "A Linha de Sombra".

Ao mesmo tempo, não faltam a seus romances o caráter "problemático" dos heróis modernos e o cenário asfixiante em que se cruzam culpas, aflições existenciais e a perda do sentido da totalidade. Nesse sentido, a obra de Conrad está a meio caminho entre o século 19 e uma modernidade que se inicia cheia de maus presságios; entre o fascínio pelo desconhecido e a claustrofobia de um planeta cujos mais recônditos cantos foram engolidos pela engrenagem da história e pela presença destrutiva do humano --como podemos ler em "Lorde Jim" e "O Coração das Trevas".

Escrito durante a Primeira Guerra Mundial, "A Linha de Sombra" é o relato da transição de um mundo idealmente organizado segundo leis arbitrárias (porém implacáveis) para a gratuidade que corresponde à nova condição do homem, ignorante de sua origem, alienado de seus próprios fins.

Há duas narrativas nesse romance: no plano factual, é a história de um marinheiro que, após tomar a decisão de abandonar uma carreira promissora, vê-se premiado com o comando de um navio; no plano alegórico, é uma meditação sobre as idéias de graça e acaso.

O anônimo herói de Conrad é o narrador do romance, e essa opção estilística responde por boa parte do encanto do livro, pois cria uma defasagem entre o modo irresponsável com que o jovem marinheiro vê as coisas e a gravidade dos fatos que vão se desenrolando à sua volta. Ele permanece alheio e insolente, imerso na atmosfera preguiçosa do porto, enquanto nós percebemos que nuvens espessas se acumulam no horizonte.

Decidido a voltar à sua terra natal, o marinheiro se instala na Capitania dos Portos de uma cidade do golfo de Sião, onde encontra dois oficiais que assumem um duplo papel no romance: o capitão Giles, que o narrador toma inicialmente por um insano, mas cujos vaticínios acabam se confirmando de modo quase sobrenatural; e o capitão Ellis, descrito caricaturalmente como um Netuno decaído e que será o "agente propiciador" que o reconduz a uma vida de aventura. Essas duas personagens têm um papel-chave na economia simbólica do romance: são o destino ao qual o jovem marinheiro quisera abdicar e que agora o seduz.

Ironias

A reconciliação do protagonista com sua vocação marítima corresponde aos momentos mais líricos do romance, em que seu navio é descrito com volúpia fetichista. Mas é justamente aí que começam as ironias de Conrad. Pois, a partir do momento em que o narrador se sente ungido pela graça, começam os seus reveses.

A tripulação é vítima de uma epidemia, e a embarcação fica semanas à deriva num oceano estagnado, assolado pelo fantasma de seu ex-capitão, que morrera numa fúria autodestrutiva: "A intensa solidão do mar agia como veneno no meu cérebro. Quando voltei os olhos para o navio, tive uma visão mórbida dele como uma sepultura flutuante".

Ao final, o navio e seu novo capitão escapam da tragédia assim como entraram: por acaso, envolvidos pela espuma da gratuidade. Para o romântico herói de Conrad, a "linha de sombra" marca a passagem para uma maturidade que implica a aceitação das contingências.

Para nós, leitores pós-românticos, ela assinala o naufrágio na indiferença do mundo, nessa "imensidão que não aceita rótulos, não guarda memórias e não contabiliza vidas".

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