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Rubem Fonseca tumultua lugares de fato e ficção em "O Caso Morel"

(19/07/2003)

FÁBIO DE SOUZA ANDRADE
especial para a Folha de S.Paulo

No dicionário das idéias feitas, a literatura policial dispara uma pergunta automática --"Quem foi?"--, às vezes divertida e quase sempre diversionista charada em busca de um bode expiatório, motor suave do entretenimento. Há exatos 30 anos, quando Rubem Fonseca, então o contista de "Os Prisioneiros" (1963), "A Coleira do Cão" (1965) e "Lúcia McCartney" (1969), publicou seu primeiro romance, "O Caso Morel", a expectativa dos leitores já estava uma clave acima.

A pergunta passara a um intrigado "Do que se trata?", reformulada pela estranheza de sua prosa curta e cortante, rasgando o celofane da fórmula fácil. Nos seus contos, Fonseca, fincara as estacas da narrativa em universo próprio, onde a abjeção e a violência dão a liga entre a má consciência entediada das elites e a vida degradada nos andares de baixo da pirâmide.

Hoje, em meio à nova maré montante da literatura que brota da marginalidade e às discussões sobre a persistência crítica do realismo brasileiro, consolidado o prestígio do escritor, roteirista de cinema e contista, "O Caso Morel" não perdeu o interesse.

O romance de estréia do autor de "A Grande Arte" funciona como uma porta pivotante, conduzindo-nos ora ao que nele há de construção literária, ironia e distanciamento, ora a um espelho fiel, reprodução brutalista da realidade que mora ao lado. São mundos que se contaminam e co-determinam, mas não se confundem. E se, às vezes, nos parecem o mesmo, é resultado de um emaranhamento voluntário, da mão de um narrador disposto a tumultuar os lugares de fato e ficção.

O narrador, aqui, é um, ou melhor, são dois narradores-personagens. Paul Morel, pseudônimo de Paulo Morais, é um artista bem-sucedido no circuito Bienal-galerias que, preso, se descobre escritor por compulsão. O público-alvo do seu relato, confessional, é escolhido a dedo. Vilela, escritor em crise, ex-advogado e ex-comissário de polícia, recolhe em visitas regulares suas páginas manuscritas, sob os olhos curiosos do delegado Matos. Direito, polícia e arte, três maneiras equivalentes de sujar as mãos, na definição que Fonseca empresta às personagens, mas que ecoa sua experiência pessoal, advogado e policial de rua no Rio dos anos 50.

Em "A Coleira do Cão", conto que deu nome ao livro, o mesmo Vilela já aparecia como um comissário atípico, com laivos de literato, contemplando à meia distância, observação participante, o submundo corrupto das delegacias, a truculência do xadrez e das batidas, enfim, o espetáculo triste e sujo da miséria e subprodutos. Uma combinação de horror circunspecto, retidão moral e sentido estético aguçado fazem dele um alter ego do autor, embaralhando mais uma vez verdade literal e recriação artística.

Menos do que a elucidação do "caso Morel", a responsabilidade pelo assassinato que levou o pintor à prisão, o que dá vida ao romance é a alternância de vozes conduzindo à progressiva identificação de Vilela com o aprendiz de escritor. Os episódios confinam-se ao andar de cima, vaza pouco a voz do morro no dia-a-dia de Morel. Desencantado com a arte (é premiado com uma instalação de tubos de esgotos), busca uma salvação nos excessos: escatologia, obscenidade, sadismo e masoquismo permeiam os casos de Morel (uma jovem bem nascida com inclinação artística, uma prostituta, uma pintora primitiva e madames de plantão). Todos os corpos, a começar do seu, são corpos de delito, culpa e expiação.

Tentativas de ordenar essa experiência em forma narrativa fascinam e desapontam Morel e Vilela, dividindo espaço com escrita diversa (laudos de necropsia, boletins de ocorrência, diários), perturbadora do esforço construtivo maior. O colapso final dos narradores duplos renova a questão sobre o sentido dessa saturação da violência em Rubem Fonseca.

Denúncia, alegoria, duplicação do real, cinismo, entretenimento: afinal, de que se trata? Se o resultado diverte, produz desconforto, o que lhe cabe como um mérito.

Fábio de Souza Andrade, 37, é professor de teoria literária na USP, autor de "Samuel Beckett - O Silêncio Possível" (Ateliê) e "O Engenheiro Noturno - A Lírica Final de Jorge de Lima" (Edusp)

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