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Realidade deu cores à fantástica Macondo

(09/08/2003)

SYLVIA COLOMBO
editora-adjunta de Ilustrada

A obra que projetou internacionalmente o dito realismo mágico latino-americano, curiosamente, tem suas raízes vincadas mais na realidade do que na fantasia.

Foi de sua cidade natal, Aracataca, no norte da Colômbia, que Gabriel García Márquez, 75 --Nobel de Literatura em 1982--, tirou inspiração para criar Macondo, a cidade dos espelhos e das miragens, onde "Cem Anos de Solidão" (67) --lançado amanhã na Biblioteca Folha-- é ambientado.

E foi também das lembranças da casa onde passou a infância, com a avó supersticiosa, o avô ex-militar, as incontáveis tias e suas crenças em fantasmas, que García Márquez se armou para definir o fantástico clã dos Buendía.

Da avó, tomou o tom tranquilo e imperturbável que utilizava para contar as histórias mais inverossímeis -fossem de fantasmas ou de coisas que acreditava terem acontecido às pessoas-, sem alterar as feições do rosto ou a entonação de voz, como se se tratassem dos acontecimentos mais naturais do mundo. Do avô, as narrativas sobre as inúmeras guerras entre liberais e conservadores das quais tomou parte e que dividiram a Colômbia a partir de meados do século 19.

A história tem início com a fundação de Macondo pelo patriarca dos Buendía, o sonhador e quixotesco José Arcadio. Mas é em seu filho, Aureliano, o primeiro ser humano a nascer em Macondo, que a história se centrará.

O coronel Aureliano e sua mãe, Ursula, são praticamente os únicos personagens a perdurarem por quase todo o romance. Funcionam como ponto de conexão de toda a linhagem dos Buendía, que pode ser definida como um complexo mecanismo de repetições de personalidades e de comportamentos obsessivos.

Tantas são as semelhanças entre as gerações, que os pais passam à frente os mesmos nomes dos filhos. Segue-se, assim, uma longa lista de impulsivos Josés Arcadios e de retraídos Aurelianos.

Na casa dos Buendía, há quem saia levitando para sempre, quem enterre-se vivo entre quatro paredes, quem ande cercado de borboletas quando está apaixonado, quem desfie lamúrias ininterruptamente por dias seguidos, quem marque a hora da própria morte, quem faça peixinhos de ouro para depois desfazê-los e quem dedique a vida toda à idéia fixa de decifrar um pergaminho cuja mensagem é o seu próprio fim.

Cada comportamento raro dos personagens remete ao pavor coletivo que os Buendía têm da solidão, que se revela nos olhares e nas expressões tristes de todos os membros do clã. O livro é, na verdade, um verdadeiro tratado sobre o comportamento do homem diante da solidão.

Mas a obra também permite uma leitura histórica. O pano de fundo são os sangrentos enfrentamentos entre liberais e conservadores na Colômbia.

Por meio do coronel Aureliano Buendía --um sanguinário comandante liberal que luta inúmeras guerras sem saber qual é sua causa-- o autor mostra como as diferenças ideológicas entre os dois grupos aos poucos desapareceram e estes irmanaram-se na brutalidade, na corrupção e no apego ao poder.

Também do ponto de vista político pode-se ler "Cem Anos de Solidão" como uma metáfora do isolamento da América Latina. Macondo é um lugar sem comunicação com o mundo, que só conhece os avanços tecnológicos muito tarde e que padece do esquecimento generalizado por nunca ter registrado sua história.

O tema da memória pontua o romance. Em um episódio, o povoado sofre um surto e todos se esquecem do nome das coisas e para que elas funcionam.

Em outro, o último da linhagem dos Buendía não consegue convencer os atuais habitantes de Macondo de que sua família realmente existiu e fundou a cidade.

Em tempo, deve-se reparar nos insetos. Ao final do livro, fica a sensação de que tudo não se passou de um embate entre estes e a memória dos homens. Não é preciso dizer quem vence...

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