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A Europa periférica se revela num divã
(23/08/2003)
VINICIUS MOTA
da Folha de S.Paulo
Zeno Corsini leva uma vida banal até que, a pedido de seu psicanalista, decide narrá-la. "A Consciência de Zeno", que a Biblioteca Folha lança amanhã, é o romance a partir desse relato feito com propósitos terapêuticos.
A narrativa, como notará o leitor, não transforma a biografia do protagonista, não a enobrece. O burguês mimado da Trieste entre os séculos 19 e 20, aos olhos de quem lê seu relato, não se redime de seu fado ordinário, embora tente, por vezes, e sem muito esforço, fazê-lo.
A operação que torna o que seria pouco mais que um diário insosso numa obra literária de qualidade é o descompasso entre o ato e o verbo. Mais precisamente: é a preponderância quase absoluta da ação sobre as palavras.
Zeno ensaia mil estratagemas para deixar de fumar, mas está condenado à nicotina. Rebusca nas deliberações retóricas para conquistar a mulher que desejava. Falha. Para não perder a viagem, pois queria se casar, dirige o pedido a uma irmã mais nova. Diante de novo fracasso, "aceita" propor matrimônio à irmã mais velha, a mesma que, ao ver pela primeira vez, julgara a mais feia da família, dotada de um estrabismo radical.
O protagonismo de Zeno fica extremamente enfraquecido. Está mais à deriva que no timão de sua aventura. É compelido às situações. Seu retrato autobiográfico sem cessar encobre com palavras novas significados velhos deixados poucas páginas atrás.
Mas é o próprio Zeno que está a criar esse efeito. Saindo da narrativa, essa estranheza se duplica pelo fato de o ter composto um outro, o verdadeiro autor, Italo Svevo, pseudônimo de Ettore Schmitz (1861-1928).
Se Zeno age de forma deliberada ou se, pelo contrário, apenas revela toda a volubilidade de seu caráter, é uma daquelas questões que convidam a intermináveis, embora prazerosas, reflexões.
O mundo onde vive recende a mediocridade intelectual e cultural. "No comércio, a teoria é utilíssima, mas só se deve aplicá-la após fechar o negócio", dizia um mandamento do bom comerciante do seu então futuro sogro.
Pululam, como essa, outras frases de auto-ajuda para se dar bem nas transações. Carece identificação com as vanguardas intelectuais ou artísticas européias da época. Impera a preguiça intelectual dos burgueses de meia-idade que se sustentam, desde que fiquem longe dos negócios, dos empreendimentos dos pais broncos. Exprime-se toda a baixeza cultural de uma Trieste periférica.
A própria psicanálise, de que Zeno pretende fazer troça, se brutaliza. Mas a guerra, que vem chegando aos poucos no final do romance, vai fazer penetrar, a partir do trauma, o autêntico mundo de Freud nas entranhas dos europeus mais periféricos. Se Zeno sobreviveu à guerra, o que só podemos imaginar pois Svevo não conta, seria interessante colocá-lo de volta no divã.
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