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"Pantaleón e as Visitadoras" satiriza os males latinos

(13/09/2003)

JOSÉ GERALDO COUTO
colunista da Folha

Um dos romances mais populares de Mario Vargas Llosa (ao lado de “Conversa na Catedral” e “Tia Júlia e o Escrevinhador”), “Pantaleón e as Visitadoras” (1973) é também um dos exemplos mais representativos da literatura singular do autor peruano nascido em 1936.

Entre os expoentes do chamado “boom” latino-americano dos anos 60 e 70, Vargas Llosa talvez seja o mais distante do fantástico e o mais comprometido com o realismo clássico. Não por acaso, seu grande ídolo literário é Gustave Flaubert (1821-1880), e seu livro de cabeceira, “Madame Bovary”.

Mas o realismo de Vargas Llosa, à diferença do dos grandes romances oitocentistas, sempre se serviu das técnicas mais modernas de narração, do monólogo interior à descontinuidade cronológica, da mistura de gêneros ao estilhaçamento da voz narrativa.

“Pantaleón” é, basicamente, uma sátira política e de costumes que fala não apenas do Peru, mas de toda uma América Latina profunda, com seus militares onipresentes, sua miséria material, seu misticismo obscurantista, sua truculência política e social.

Em 1956, recém-promovido a capitão do Exército peruano, o dedicado e discreto Pantaleón Pantoja recebe a missão de organizar um serviço de prostitutas volantes (as “visitadoras”) para servir aos postos e guarnições militares encravados na selva amazônica.

Com seu quartel-general estabelecido em Iquitos, o empreendimento acaba fugindo ao controle do Exército --e do próprio Pantaleón--, provocando atritos com a igreja, a imprensa e a população da região. Para complicar, os militares vêem-se às voltas na mesma época com um profeta popular que arrebanha um número crescente de seguidores para suas cerimônias de crucificação de animais e, eventualmente, de seres humanos.

Todo o humor do livro provém de um engenhoso jogo de contrastes. A começar pela personalidade do protagonista, bom moço que vive modestamente com a mãe e a mulher (a quem nunca traiu) até se ver transformado da noite para o dia no rei da prostituição na Amazônia peruana.

Outra fricção com efeitos cômicos é produzida pela linguagem formal dos textos oficiais que tratam em detalhes das atividades das visitadoras. Há, ainda, todo tipo de inversão do discurso: oficiais do Exército tingem a prostituição de patriotismo, altos prelados dão foros de religiosidade a seus interesses particulares, um radialista corrupto apresenta-se como guardião da moralidade.

Até aí, estamos num terreno semelhante ao dos romances de maturidade de Jorge Amado, em que a sátira política se entrelaça com a farsa erótica. O que distancia Vargas Llosa dessa matriz é o domínio virtuosístico das técnicas narrativas não convencionais.

O livro não tem propriamente um narrador. Sua estrutura alterna capítulos feitos de diálogos com outros compostos pelos textos mais diversos: cartas, memorandos do Exército, notícias de jornal, programas radiofônicos.

Compõe-se um romance polifônico e polimorfo, que convoca o leitor a participar da construção da história, juntando os fragmentos e preenchendo os espaços vazios. Em suma, um texto lúdico e estimulante, um dos pontos mais altos a que chegou a literatura latino-americana na tentativa de fundir o entretenimento, a experimentação e a reflexão crítica.

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