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"O Processo" expõe o pesadelo do homem

(27/09/2003)

MAURICIO PULS
da Folha de S.Paulo

Mesmo quem não leu "O Processo", de Franz Kafka (1883-1924), sabe alguma coisa sobre a obra, como revela o adjetivo "kafkiano", incorporado ao senso comum, que "evoca uma atmosfera de pesadelo, de absurdo, especialmente em um contexto burocrático que escapa a qualquer lógica ou racionalidade" (Houaiss). O pesadelo impregna o romance, escrito em 1914 e editado em 1925.

Na manhã de seu 30º aniversário, um homem é detido por dois guardas. Vítima de um processo que nunca lhe é revelado, tem de enfrentar uma imensa burocracia judiciária. Na noite da véspera de seu 31º aniversário, o homem é executado por dois guardas.

O protagonista do romance, Josef K., é um burocrata de um grande banco, já parcialmente deformado pela profissão, em luta contra um mundo ainda mais burocratizado. Não é uma figura simpática: habituado a mandar, despreza os subalternos e, cioso de seu status, repele as ordens que recebe dos servidores da Justiça. A rebeldia o opõe aos outros funcionários, meros capachos que cumprem as ordens sem discutir.

Em contraposição a K., o burocrata exemplar é o torturador, que rejeita o dinheiro que o executivo lhe oferece para não espancar dois guardas: "Não me deixo subornar. Fui empregado para espancar, por isso espanco". O "bom" empregado nunca questiona sua missão, apenas trata de realizá-la.

Inflexível, K. recusa todas as propostas para chegar a um acordo com o tribunal, admitindo sua culpa. O processo caminha mal: "Consideram-no culpado", diz o capelão. "Mas eu não sou culpado. Como é que um ser humano pode ser culpado?", pergunta K.. "Mas é assim que os culpados costumam falar", retruca o religioso.

Seu crime está inscrito em seus lábios. "Nossas autoridades não buscam a culpa na população, mas, conforme consta na lei, são atraídas pela culpa e precisam nos enviar --a nós, guardas. Esta é a lei", diz o policial. K. alega ignorar essa lei. "O senhor irá senti-la."

Qual é sua culpa? Kafka não o diz. Em todo o romance, K. comete uma só falta: a desobediência. Discute com os guardas, responde ao inspetor, recusa-se a fornecer informações ao juiz. Não reconhece a autoridade dos mais velhos, investe sobre as mulheres alheias. Daí seu destino trágico. A desobediência, ensina a Bíblia, é pior que um crime: é um pecado.

Freud explica que toda civilização pressupõe a repressão dos instintos: os desejos individuais devem ser subordinados à promoção do bem comum. Sem o respeito à autoridade, a sociedade desapareceria. A civilização é uma prisão, mas ninguém quer deixá-la: "A senhora não quer ser libertada!", constata K., surpreso.

O tribunal é o superego social. Contudo a repressão não elimina o reprimido, apenas o reveste com uma aparência respeitável. Em Kafka, toda frase, todo gesto encerra um sentido oculto. Mesmo os burocratas tratam de obter, às escondidas, aquilo que eles têm o dever de coibir. As virtudes públicas escondem vícios privados.

A submissão à autoridade não é completa, e os homens acabam desobedecendo. "As pessoas sempre se rebelam", nota o oficial de Justiça. Ninguém é inocente. Por isso o tribunal não admite a defesa nem é dissuadido: "Um único carrasco poderia substituir o tribunal inteiro", diz K.. A vida é uma espera inútil: o homem nunca alcançará a justiça que almeja.

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