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Mann testa disciplina diante da surpresa

(04/10/2003)



JEAN MARCEL CARVALHO FRANÇA
especial para a Folha de S.Paulo

O pensador alemão Nietzsche (1844-1900) escreveu certa vez que os homens, por razões não muito nobres, como o medo e a insegurança, construíram um mundo supostamente lógico e cheio de regras para que a existência se tornasse tolerável. Ocorre, porém, advertia o mesmo Nietzsche, que a vida parece zombar de tais mecanismos de proteção e, com uma constância talvez superior à que gostaríamos, coloca abaixo todas as certezas que dão sentido e estruturam a nossa temporada no mundo.

O próximo volume a ser lançado amanhã pela Biblioteca Folha, "Morte em Veneza", escrito pelo grande romancista alemão Thomas Mann (1875-1955) em 1912, conta-nos uma história que, em linhas muito gerais, ilustra com maestria as observações de Nietzsche. Mann coloca-nos diante de Gustav Aschenbach, um intelectual solitário e bastante bem-sucedido que, um belo dia, inspirado por um encontro inusitado, resolve sair de sua rotina de décadas --passar os verões em sua casa nas montanhas próximas à Munique-- e empreender uma viagem de férias um pouco mais ousada.

Aschenbach, é bom que se saiba, não era homem de desregramentos ou exageros. Desde de muito cedo, enfrentara sérios problemas de saúde e padecera de uma consequente falta de energia vital. Tinha sido, pois, à custa de muita disciplina, de muito controle de si, que havia domado o seu caráter, compensado a sua debilidade corporal e triunfado na competitiva carreira escolhida. Nada, ou quase nada, portanto, parecia poder levar o metódico cinquentão a abdicar do meticuloso autocontrole que lhe garantira até então não somente a sobrevivência como o sucesso.

É bom que se saiba, igualmente, que o "herói" de "Morte em Veneza" era uma "natureza artística" e, segundo conta-nos o narrador, "a quase todas as naturezas artísticas é inata uma tendência exuberante e traidora: reconhecer a beleza criadora de injustiça e manifestar por ela aristocrática preferência, interesse e homenagem". Aschenbach, em poucas palavras, acreditava, no seu íntimo, que somente por meio do belo a verdade se revela no mundo dos homens.

Pois bem! É esse homem cheio de regras, cheio de "causas e efeitos", "formas e conteúdos", para usarmos uma expressão do referido Nietzsche, que resolve explorar as emoções de uma viagem. A intensidade do primeiro impulso é tanta que Aschenbach cogita até mesmo seguir para um destino exótico, para uma misteriosa "região tropical" qualquer. Ânimos aquietados, todavia, conclui que o melhor seria uma breve perambulação dentro do bem conhecido Velho Mundo, perambulação com destino incerto, a princípio, mas que acabará em Veneza.

Em uma Veneza quente, por vezes opressiva e ameaçada por uma epidemia de cólera, o disciplinado Aschenbach será vítima de uma daquelas peças que a vida costuma pregar nos que acreditam poder controlá-la na sua totalidade. O bem-sucedido intelectual depara, em meio aos monótonos frequentadores de seu sofisticado hotel, com um adolescente polonês, de nome Tadzio, que, aos seus olhos, é a própria encarnação da beleza. Os efeitos dessa quase "visão divina" na vida do pacato homem de meia-idade serão gigantescos. Mas isso cabe ao leitor descobrir percorrendo as páginas do envolvente "Morte em Veneza".

Jean Marcel Carvalho França é doutor em literatura comparada e autor de "Visões do Rio de Janeiro Colonial" (José Olympio), entre outros

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