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"Cidades Invisíveis" traça a aula magna dos opostos
(25/10/2003)
CASSIANO ELEK MACHADO
da Folha de S.Paulo
A julgar pelas conversas de seus dois únicos protagonistas, o explorador veneziano Marco Polo e o imperador dos tártaros Kublai Khan, "As Cidades Invisíveis", de Italo Calvino, seria um livro para ser lido naquilo que nele não está escrito. Pelo frio se entenderia o calor, pelo barulho, o silêncio, a saudade seria o atalho do amor.
Mas não é preciso cavoucar nas entrelinhas desse romance para aprender suas lições dos opostos.
Nesse trabalho fabuloso (nos dois sentidos), que a Biblioteca Folhaleva às bancas a partir de amanhã, Calvino deixa essa aula magna visível em cada poro de suas menos de 200 páginas.
"Os outros lugares são espelhos em negativo. O viajante reconhece o pouco que é seu descobrindo o muito que não teve e o que não terá", registra em uma passagem.
"De uma cidade, não aproveitamos as suas sete ou 77 maravilhas, mas a resposta que dá às nossas perguntas", adiciona adiante. Ou: "Para descobrir quanta escuridão existe em torno, é preciso concentrar o olhar nas luzes fracas e distantes".
O escritor italiano (nascido em Cuba em 1923 e morto em 1985 em Siena) seguiu o mesmo preceito neste romance de 1972. Fez de um de seus livros aparentemente mais simples talvez o mais profundo.
"'As Cidades Invisíveis' é o livro onde penso ter dito mais coisas, talvez porque tenha conseguido concentrar em um único símbolo todas as minhas reflexões, experiências e conjeturas", escreveu Calvino nas anotações para uma conferência, publicada postumamente como "Seis Propostas para o Próximo Milênio", um de seus maiores hits.
"Cidades" também foi um sucesso. Só no Brasil, onde foi lançado pela Companhia das Letras em 1990, em tradução do escritor Diogo Mainardi, a mesma da Biblioteca Folha, o diálogo entre Khan e Marco Polo já se aproxima da 20ª reimpressão.
E sobre o quê conversam o imperador do Oriente e o explorador do Ocidente, afinal? Sobre cidades, cidades que o veneziano, como uma Sherazade barbada, descreve dia após dia. São 55 delas, todas com nomes de mulheres com um sopro de passado no nome: Anastácia, Ercília, Eudóxia, Teodora, Zenóbia.
Nessa rede de cidades, tramadas em 11 grupos diferentes (As Cidades e o Desejo, As Cidades Delgadas, As Cidades e os Símbolos...), mais conta o que Khan quer escutar do que o que Polo tem a dizer. Ou, o que valeria para todos, "quem comanda a narração não é a voz: é o ouvido".
Amigo da literatura de Jorge Luis Borges, Calvino usa sua audição apurada para construir com 55 metrópoles imaginárias a sua Biblioteca de Babel, que guarda todos os livros do mundo para guardar um livro só.
Ou como diz uma passagem de "As Cidades Invisíveis": "Marco Polo descreve uma ponte, pedra por pedra. --Mas qual é a pedra que sustenta a ponte?, pergunta Kublai Khan. --A ponte não é sustentada por esta ou aquela pedra, responde Marco, mas pela curva do arco que estas formam. Kublai Khan permanece em silêncio, refletindo. Depois acrescenta: -- Por que falar das pedras? Só o arco me interessa. Polo responde: -- Sem pedras o arco não existe".
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