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James Joyce mostra em espelho o lixo da Irlanda

(01/11/2003)

FLÁVIO MOURA
free-lance para a Folha de S.Paulo

Aos dezoito anos, James Joyce (1882-1941), então aluno do segundo ano do University College, em Dublin, escreveu um ensaio na prestigiada revista inglesa "Fortnightly Review" sobre o norueguês Henrik Ibsen (1828-1906).

O texto louvava a capacidade que o dramaturgo de "Peer Gynt" tinha de extrair expressividade de personagens imersos numa existência monótona e medíocre.

Concluído em 1907, "Dublinenses" demonstra o quanto havia, nesse elogio, do projeto literário do próprio Joyce. Os quinze contos que fazem parte do livro formam um retrato monótono e medíocre da vida em Dublin, mas expressivo a ponto de inaugurar um capítulo da literatura moderna.

O jovem escritor centrou foco numa vida urbana desconhecida da literatura irlandesa. Os cenários são os quartos fechados, a desolação das ruas escuras, os tijolos marrons em fileiras de casas a perder de vista; os personagens, trabalhadores de classe média baixa que habitam um mundo de hipocrisia religiosa, corrupção política, abuso sexual, pobreza e violência doméstica.

Justamente por isso, o trabalho demorou a ser publicado. A crueza do realismo, somada a referências desabonadoras a pessoas e lugares da cidade, deixou seu editor apreensivo, e a obra só saiu em 1914. "Não é minha culpa que o cheiro de lixeiras, tabaco velho e carniça ronda minhas histórias. Acredito seriamente que você vai atrasar o curso da civilização na Irlanda se impedir o povo irlandês e ver a si mesmo nesse espelho que poli para ele", explicava Joyce ao editor.

Conto de abertura do livro, "As Irmãs" exemplifica o incômodo que o livro poderia causar. O texto é narrado por um garoto impressionado com um padre que morre após um longo período paralítico. Críticos identificaram o tipo de paralisia de que sofria como próprio da sífilis, o que faria seu passado de vergonha, levemente sugerido no conto, redobrar de intensidade.

A opção de retratar o lado obscuro da cidade pode ser vista em paralelo com uma reviravolta na vida do autor: em 1891, uma crise financeira leva a família a mudar-se para um bairro pobre. É lá que o adolescente toma contato com o mundo de quartos alugados, casas em áreas infectas e asilos que retratará em histórias como "Dois Galantes". Entre os mais célebres do livro, o conto narra a história de dois jovens que vagam pela cidade enquanto um deles gaba-se de sua capacidade de explorar a namorada, uma garota pobre que cai na prostituição.

Por sua natureza experimental os contos não têm clímax ou estrutura fechada , "Dublinenses" institui a narrativa curta como forma literária de prestígio, capaz de ombrear com o romance em riqueza de significado.

O livro é tributário da idéia de que algumas horas de uma existência trivial oferecem mais abertura à investigação do espírito dos personagens do que uma vida inteira de gestos grandiosos. Essa noção, que perpassa a literatura moderna desde fins do século 19, tem exemplo acabado em "Ulisses" (1922), obra mais conhecida de Joyce, volume de setecentas páginas que narra um único dia na vida de um irlandês comum.

Críticos falam em "epifania" para descrever a força desses contos. Referem-se, com isso, à capacidade de captar momentos fugidios a partir de uma prosa enxuta que parece esconder qualquer forma de artifício. Que esse mesmo autor tenha sido capaz, em sua obra posterior, de criar uma linguagem intricada a ponto de transformar a noção de representação em literatura é motivo suficiente para entender por que muitos o consideram o maior prosador do século 20.

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