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"Adriano" concilia olhar humano com rigor histórico
(15/11/2003)
CÁSSIO STARLING CARLOS
editor do Folhateen
Dizem que na hora da morte a gente vê a vida passar diante dos olhos como um filme acelerado. Usando outros meios e outra velocidade, a belga naturalizada americana Marguerite Yourcenar (1903-1987) construiu em "Memórias de Adriano" um relato desse tipo narrado pelo imperador romano do seu próprio ponto de vista. Tecnicamente, não há no expediente nenhuma ousadia. Mas o resultado é extraordinário.
Publicada originalmente em 1951, a obra foi iniciada quase 30 anos antes. Apesar de completos, os manuscritos produzidos por Yourcenar entre 1925 e 1929 foram destruídos pela autora. "E mereciam sê-lo", segundo ela. Apenas em 1948 ela retomou o plano.
As memórias são endereçadas a Marco Aurélio, imperador romano e filósofo estóico que comandou Roma entre 161 e 180, depois de suceder a Antonino, que por sua vez sucedera a Adriano (imperador de 117 a 138).
Nesses 22 anos, Adriano ocupou-se de pacificar os territórios conquistados por seu antecessor, o belicista Trajano, e de restaurar a ordem econômica na sede do império.
Na obra, Adriano descreve detalhadamente os processos político e militar que o antecederam e os que comandou. Yourcenar, porém, não visa a um tratado político, muito menos a um romance histórico na linha das obras recentes que retratam personagens como Alexandre, Cleópatra, entre outros.
Ela se interessa pelo homem e suas realizações, mas do ponto de vista dele. Como define a autora, "nunca perder de vista o gráfico de uma vida humana, que não se compõe, digam o que disserem, de uma horizontal e de duas perpendiculares, mas de três linhas sinuosas, prolongadas até o infinito, incessantemente reaproximadas e divergindo sem cessar: o que o homem julgou ser, o que ele quis ser, e o que ele foi".
Potencial romanesco
Sem perder de vista o rigor histórico, conquistado com o recurso a um arsenal de fontes (explicitadas ao final do volume), Yourcenar se interessa mesmo é pelo potencial romanesco de seu personagem.
Ou seja, mesmo que o texto seja repleto de fatos históricos e de reflexões de natureza filosófica, é a história do homem e sua possibilidade de expressar ao mesmo tempo a miséria e a grandeza do humano que encontramos aqui.
História transcorrida numa fase em que, como destaca Yourcenar citando Flaubert, "os deuses, não existindo mais, e o Cristo, não existindo ainda, houve, de Cícero a Marco Aurélio, um momento único em que só existiu o homem".
Isso se torna possível não apenas pelo fato de se tratar de um grande homem, de uma eminência histórica, por assim dizer, mas por Yourcenar conseguir, por meio da escritura, recriá-lo do ponto de vista íntimo, uma perspectiva da qual a grandeza só se atribui aos deuses.
Nesse contraste de perspectivas do íntimo e do público, Yourcenar consegue pintar um retrato sem idealizações, no qual o trágico da vida alimenta a condição humana incessantemente. E entrega ao leitor uma história de uma perspectiva que a história apagou.
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