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João Ubaldo coloca jagunço na encruzilhada da História

(20/12/2003)

MARCELO PEN
crítico da Folha

Quando João Ubaldo Ribeiro lançou "Sargento Getúlio", em 1971, a vertente literária a que o livro pertence estava em baixa. O regionalismo produzira algumas obras-primas de José Lins do Rego, Graciliano Ramos e Érico Veríssimo nos anos de 1930 e 1940. Mas, a despeito de uns romances nos decênios seguintes, e do ápice da prosa de João Guimarães Rosa, era a ficção urbana que vinha ganhando espaço. "Sargento Getúlio" pode ser visto como símbolo dessa mudança de rumo.

Este romance hoje clássico conta a história de Getúlio Santos Bezerra (cujo "nome é um verso"), que, após matar a mulher grávida por conta de uma suposta traição, torna-se protegido de um caudilho sergipano. Sargento da Polícia Militar, com 20 mortes nas costas, recebe a incumbência de capturar um inimigo político e trazê-lo, vivo, até seu chefe em Aracaju.

Getúlio prende o camarada em Paulo Afonso, na Bahia, e inicia uma viagem pelo sertão. No entanto, a meio caminho, recebe a notícia de que o equilíbrio político mudara e que seu chefe, ora acuado, não pode protegê-lo. O sargento deve soltar o prisioneiro e desaparecer por uns tempos.

Para piorar a situação, o preso seduz a filha do fazendeiro que os hospeda. Como castigo, Getúlio arranca-lhe quatro dentes com alicate. Em seguida, a fazenda é invadida por forças do governo e, no meio do tiroteio, o sargento decapita um tenente. Getúlio está decidido a levar o prisioneiro a Aracaju. Mesmo sem o aval do caudilho. Mesmo ao custo da própria vida.

Escrito em primeira pessoa, sem escamotear os atos bárbaros do protagonista, o romance narra um trágico canto do cisne. Fruto de uma vida paralisada no interior de Sergipe ("o tempo apeava") e aspirando a um destino quase mítico, Getúlio não entende a mudança política, ideológica e social que ocorre ao seu redor.

Preso numa encruzilhada da História, ele não vê alternativa senão seguir em frente: "Não sou homem de parar no meio", diz. Ante a ordem de desaparecer, retruca: "Quem pode sumir é os outros, como é que eu posso sumir se sou eu?". O jagunço é símbolo de um poder arcaico, de origem agrária, repentinamente indesejado.

O que antes era feito abertamente, agora se realiza às ocultas. A figura ostensiva Getúlio precisa desaparecer, mas como? Dentro da lógica do personagem, trata-se de algo impossível, como a morte em vida ou a inconsciência no comando da consciência.

A cena final do romance, em que Getúlio espia a capital do Estado do outro lado do rio, é significativa. A cidade, nêmesis ingrata e incompreensível, de onde emanam os ventos da mudança, está muito próxima, mas lhe é inacessível.

O sargento se instituiu na história pela força do verbo e de um irresistível fluxo de consciência verbalizado ("Quando estou pensando, estou falando, quando estou falando, estou pensando, não sei direito.") que se inicia com a magnífica frase "A gota serena é assim, não é fixe". Seu reino é o da fábula. Por meio de um discurso exuberante, misto de arcaísmo, oralidade e ultracorreção, sua marca sobrevive. Mas seus tempos são outros.

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Lançado: 21/12


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