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Cony pai embrulha o "ontem" em romance
(21/12/2003)
CASSIANO ELEK MACHADO
da Folha de S.Paulo
Um dos personagens mais interessantes de nossa literatura contemporânea é alguém que passou a vida do lado de fora dos livros. Ernesto Cony Filho, ou "o pai", como esse jornalista carioca foi apresentado por seu filho, o também jornalista carioca Carlos Heitor Cony. "O pai" morreu em 14 de janeiro de 1985, aos 91, mas renasceu uma década mais tarde.
Foi com uma quase biografia dele, o "quase-romance" "Quase Memória", que a Biblioteca Folha leva às bancas amanhã, que Cony, "o filho", voltou ao mundo da ficção, após 20 anos sem publicar.
E assim conhecemos o sujeito que usava a palavra "troféu" para se referir a martelos e canivetes, que admirava um "beque" chamado Nariz, que usava a colônia francesa Coty (e cismava que Cotys, Cunys, Colignys eram parentes), que comprava "resmas" de papel colorido para fazer balões --e os balões mais lindos já feitos no Brasil (ao lado dos pintados por Guignard) talvez sejam os de Cony pai revistos por Cony filho--, que decidia de hora pr'outra fabricar tinta de canetas ou perfumes de alfazema em casa.
Dos fundos da casa foi também Cony pai quem tirou Cony filho. Os bastidores de "Quase Memória" ficaram conhecidos logo que o livro saiu, acompanhado de boa repercussão crítica.
Cony tivera um início frenético na ficção. De 1958, quando estreou com "O Ventre", até 1967, ano de "Pessach: a Travessia", publicou oito romances. Em 1974, o hoje colunista e integrante do Conselho Editorial da Folha colocou na praça o iconoclasta "Pilatos", que até hoje defende ser seu melhor livro, e decidiu parar. Trancou-se no jornalismo, na crônica, nos juvenis e ensaios biográficos. "Fui viver."
Foi uma cadela que mudou essa história. Mila, companheira de 13 anos, adoeceu. Cony começou, então, a buscar seu "tempo perdido", ou, como crava no livro, seu "tempo desperdiçado".
Existe algo de proustiano no livro, bem como uma pitada de "Amarcord", de Fellini, ou do Rosebud de "Cidadão Kane".
Se Proust, narrador, chegou a seu "tempo da delicadeza" com o bolinho "madeleine" é com um embrulho, também saboroso, que Cony filho reencontra Cony pai.
Em dia qualquer, em um hotel no Flamengo, Cony é chamado na recepção para buscar um pacote. Era um envelope gordo, amarrado endereçado "Para o jornalista Carlos Heitor Cony. Em mão".
Era a letra d'"o pai". "A letra e o modo. Tudo no embrulho o revelava, inteiro, total. Só ele faria aquelas dobras no papel, só ele daria aquele nó no barbante ordinário, só ele escreveria meu nome daquela maneira, acrescentando a função...". Detalhe, "o pai" morrera dez anos antes.
Fosse um romance policial, interrogaria-se o homem que entregou o pacote, investigaria-se onde ficara guardado desde então. Mas nada disso interessa.
Nunca saberemos o que foi que Ernesto Cony embrulhou. Ou melhor, saberemos muito além do "quase". "O pai", conta "o filho", era daquele tipo raro de homem que dormia dizendo: "Amanhã farei grandes coisas". "O pai", oras, embrulhou no amanhã, e para sempre, um ontem.
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