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5. O Grande Gatsby - Textos publicados na Folha

Fitzgerald rompe a tradição do herói em "Gatsby"

(publicado em 28/06/2000)

CARLOS FUENTES
especial para a Folha

"O GRANDE Gatsby" é geralmente considerado o melhor romance norte-americano do século 20. Alguns, como eu, faulknerianos irredutíveis, votaríamos em "Absalom, Absalom", "Luz de Agosto" ou "O Som e a Fúria". Hemingway também tem seus defensores. Mas, numa votação geral, "O Grande Gatsby" ganharia o Oscar literário.

As razões desse prestígio são muitas e boas. Devem-se a uma tradição e à ruptura dela. A tradição é a da ascensão social do herói. Ao contrário do herói da Antiguidade, épico ou trágico, o herói moderno se distingue por ser produto da mobilidade social.

Ulisses, Aquiles, Heitor estão fixos em sua situação social. Mas o herói da literatura picaresca moderna é, quase por definição, um arrivista. Julien Sorel em Stendhal, Becky Sharp em Thackeray, Pip em Dickens e Rastignac e Rubempré em Balzac fazem do terreno da novela ou do romance o palco de sua escalada social.

O romance norte-americano não carece de heróis em ascensão. Dificilmente poderia passar sem eles uma sociedade sem passado, sem aristocracia, de colonizadores, pioneiros e imigrantes. O homem dotado de ambição, o "self-made man", isso é um protótipo da cultura norte-americana.

As exceções são magníficas. O capitão Ahab e o marinheiro Ismael em "Moby Dick", Huck Finn, de Mark Twain, e as grandes dinastias trágicas de William Faulkner --os Sartoris, os Compson, os Sutpen-- fogem da obediência aos costumes e ousam apresentar-se livres ao extremo, obcecadas, ternas e fatais.

O gênio de Fitzgerald consiste em ter concebido um herói singular, situado entre as categorias social e trágica. E a genialidade está no narrador, objetivo e distante.

O observador é Nick Carraway, vizinho modesto de Jay Gatsby, que é capaz de observar com uma distância ao mesmo tempo carinhosa e irônica a opulência do misterioso milionário. Carraway é o observador do qual tudo se sabe, mas que não pode saber tudo porque Jay Gatsby, na realidade James Gatz, encarregou-se de tornar sua origem invisível.

Essa falta de "biografia" de Gatsby que Edmund Wilson criticou em Scott Fitzgerald é exatamente o que confere a Gatsby ao mesmo tempo suas raízes, seu mistério e seu nível literário único. Como Sorel ou Rastignac, Gatsby é um arrivista.

Mas, como Hamlet, Quixote ou Ahab, é um homem movido por "uma concepção platônica dele mesmo". É um Quixote maldito, movido pela louca impulsão de seu destino e pela ilusão de um amor impossível e enganoso.

A Dulcinéia de Gatsby é Daisy Buchanan, e não devemos permitir que a imagem luminosa de Mia Farrow no filme baseado no livro obscureça a imagem verdadeira que Carraway nos proporciona do personagem. A Daisy ideal do Quixote Gatsby na realidade faz parte de um mundo negligente e confuso, o mundo dos ricos que "arruinam as coisas e as pessoas" antes de retirar-se para as cavernas de "seu dinheiro, sua enorme indiferença, que os mantêm unidos". Daisy faz parte de um mundo de ricos à deriva. Se Gatsby tem "uma concepção platônica dele mesmo", tem também uma concepção romântica de Daisy que não corresponde à verdade.

A ilusão romântica de Gatsby é que Daisy abandone seu casamento e o troque pelo amor. Ele não consegue enxergar que Daisy é uma ilusão, uma imitação, tanto na miragem do casamento quanto na do amor. Ela não sabe o que o romancista já sabia desde seu segundo livro, "Belos e Malditos": "A juventude entra numa sala vestida do azul mais pálido e sai com as vestimentas cinzas da desesperança". Para Gatsby, porém, Daisy será "o sonho incorruptível". Única coisa incorruptível na vida de Gatsby, Daisy não merece sua paixão romântica.

O mundo de Fitzgerald vive numa grande festa. Se Gatsby é mais um dos personagens em ascensão social do romance novecentista, sua modernidade é inseparável da era do jazz, da liberação sexual e da Lei Seca. Nesse sentido e ao longo de seus primeiros livros ("Deste Lado do Paraíso", 1920, "Belos e Condenados" e "Contos da Era do Jazz", 1922), Fitzgerald inaugura o tema carnavalesco da literatura norte-americana.

Distanciada da respeitabilidade burguesa e até aristocrática (nas incursões britânicas de Henry James e Edith Wharton), a festa de Fitzgerald é opulenta, louca, sexual, libertadora, vulgar --e eterna. Ou seja, Fitzgerald é o primeiro a dizer que a América é uma festa e que a festa nunca vai terminar. Desde as comportas da "era do jazz", Fitzgerald inaugura uma bacanal que se estende até o Studio 54 nova-iorquino e as autocelebrações de Hollywood.

Não importa que, vez por outra, a festa americana termine em "débâcle". A farra recomeça, porque os EUA precisam do espetáculo como recompensa por seu passado puritano e por seu esforço para satisfazer a ética protestante do trabalho --é pela porta da riqueza que se entra no céu. Mas, no mundo, é pelo palco do espetáculo que se garante a diversão. "Divertir-se até a morte" é a máxima desse hedonismo fundamental do sonho americano.

Com pontualidade trágica, Fitzgerald viveu esse sonho e deixou que ele o destruísse. Em seu ponto mais alto, lhe deu uma imagem literária permanente, a de "O Grande Gatsby". Quando terminou de escrevê-lo, disse que "nunca houve maior pureza da consciência artística do que durante os dez meses" gastos na redação da obra.

Mas Gatsby foi o zênite da trágica vida de seu autor, e o périplo desta é a conjunção perfeita do sonho e do pesadelo norte-americanos. Desde o Meio Oeste até Chicago, Manhattan e sua feira de prazeres, Long Island, e até Paris e a Riviera, Hollywood e a morte.

"Meu Deus!", respondeu Fitzgerald a seus críticos. "Esta é minha matéria, e não tenho outra em que me basear." Depois de "Gatsby", tem início o declínio físico e intelectual de Fitzgerald. Como seu personagem Dick Diver em "Suave É a Noite", ele vive em "um mundo divertido" onde se pode provocar --essa é a ilusão-- "um amor fascinado e sem reservas".

O preço dessa falsa ilusão é a desilusão certeira de Hollywood, onde o grande talento de Fitzgerald é abusado e humilhado pelos estúdios de cinema. A grandeza final do autor consiste em ser capaz não apenas de enxergar as entranhas amargas e a simulação própria do mundo do "entertainment", em "O Último Magnata", como também de enxergar a si mesmo, náufrago de seu próprio talento, em "The Crack-Up".

Morto de autodestruição aos 44 anos de idade, Fitzgerald deixou, apesar disso, em "O Grande Gatsby", uma visão cristalina da beleza e inocência perdidas do Novo Mundo americano.

O narrador Nick Carraway observa, desde uma distância irônica, o protagonista, Jay Gatsby, mas ambos, desde o "seio (...) verdejante do Novo Mundo", recriam "o momento encantado e transitório em que o homem pela primeira vez ficou sem palavras na presença desse continente (...) visto, pela última vez na história, com algo na medida de sua capacidade de assombro". Francis Scott Fitzgerald: o sonho morreu. Viva o sonho.

Tradução Clara Allain

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