5. O Grande Gatsby
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I
Em meus anos mais juvenis e vulneráveis, meu pai me deu um conselho que jamais esqueci:
- Sempre que você tiver vontade de criticar alguém - disse-me ele,+ - lembre-se de que criatura alguma neste mundo teve as vantagens de que você desfrutou.
Ele nada mais disse, mas sempre fomos comunicativos de uma maneira bastante incomum e reservada, e eu compreendi que ele queria dizer muito mais do que isso. Por conseguinte, sinto-me inclinado a guardar para mim todos os meus juízos, hábito esse que fez com que muitas naturezas curiosas se abrissem comigo, mas que também me tornou vítima de muitos maçadores inveterados.
A mente anormal percebe-a rapidamente e sente-se atraída por essa qualidade, quando ela aparece numa pessoa normal, e, assim, aconteceu que, na universidade, eu fui injustamente acusado de ser um político, por saber guardar as mágoas secretas de indivíduos violentos, desconhecidos. Quase todas as confidências eram espontâneas, eu fingia, não raro, que estava dormindo, que me achava preocupado ou, então, revelava uma leviandade hostil, ao perceber, por certos sinais inconfundíveis, que uma revelação íntima palpitava no horizonte - pois que as revelações íntimas dos jovens ou, pelo menos, os termos em que eles as exprimem, têm, habitualmente, muito de plágio e, o que é pior, de plágios desfigurados por evidentes supressões. Reservar para nós os nossos juízos, é coisa que proporciona infinitas possibilidades. Tenho ainda certo receio de perder alguma coisa, se esquecer que, como meu pai pretensiosamente sugeria, e eu, pretensiosamente, repito, um certo senso de decência fundamental é concedido, ao homem, desigualmente, ao nascer.
E, após jactar-me assim de minha tolerância, devo admitir que ela tem limite. A conduta pode basear-se em rocha sólida ou em pântano alagadiço, mas, depois de certo ponto, pouco me importa aquilo em que ela se baseie. Quando voltei ao Leste, no outono passado, senti que queria que o mundo todo estivesse metido em uniforme e colocado numa espécie de posição de sentido moral permanente; estava farto de excursões turbulentas, com privilegiados relanceares de olhos, ao coração humano. Somente Gatsby, o homem que empresta seu nome a este livro, se achava isento dessa minha reação - Gatsby, que representava tudo aquilo por que sinto natural desdém. Se a personalidade consiste numa série ininterrupta de gestos bem-sucedidos, então é certo que havia nele algo magnífico, uma apurada sensibilidade para as promessas da vida, como se ele tivesse alguma relação com esses intrincados maquinismos que registram terremotos ocorridos a dez mil milhas de distância. Essa sensibilidade nada tinha a ver com essa flácida impressionabilidade dignificada pelo nome de "temperamento criador": era um dom extraordinário de esperança, uma presteza romântica como jamais encontrei em qualquer outra pessoa e que, provavelmente, jamais tornarei a encontrar. Não... Gatsby saiu-se bem, no fim; o que perseguia Gatsby - a abominável poeira que pairava sobre a esteira de seus sonhos - é que fez com que eu perdesse temporariamente o interesse pelas tristezas abortivas e pelas ofegantes alegrias dos homens.
Por espaço de três gerações, minha família fora gente preeminente, abastada, daquela cidade do Centro-Oeste. Os Carraways são algo assim como um clã e, segundo a tradição, descendemos dos Duques de Buccleuch, mas o verdadeiro fundador do ramo a que pertenço foi o irmão do meu avô, que veio para cá em 51, mandou um substituto para a Guerra Civil e começou o negócio de ferragens a que meu pai se dedica até hoje.
Jamais vi esse meu tio-avô, mas julgam-me parecido com ele - principalmente quanto ao que se refere ao retrato um tanto impassível que lá está dependurado no escritório de meu pai. Diplomei-me em New Haven em 1915, justamente um quarto de século depois de meu pai, e um pouco mais tarde participei daquela retardada migração teutônica conhecida como a Grande Guerra. Apreciei tão vivamente aquela contra-incursão, que voltei para casa irrequieto. Ao invés de ser o cálido centro do mundo, o Centro-Oeste pareceu-me, então, a áspera extremidade do universo - de modo que resolvi seguir para o Leste e aprender o negócio de títulos. Toda gente que eu conhecia estava metida no negócio de títulos, o que me fez pensar que o mesmo poderia suportar mais um único indivíduo. Todos os meus tios e tias discutiam o assunto, como se estivessem escolhendo para mim uma escola de preparatórios e, finalmente, disseram, com fisionomias muito graves, hesitantes: "Oh!... Sem dúvida!" Meu pai concordou em financiar-me por espaço de um ano e, após várias delongas, vim para o Leste - permanentemente, pensava eu - na primavera de 22.
O aspecto prático da questão era encontrar acomodações na cidade, mas era uma estação quente, e eu acabara de deixar uma região de extensos relvados e árvores acolhedoras, de modo que, quando um jovem, no escritório, sugeriu que devíamos alugar juntos uma casa numa cidadezinha próxima, aquilo me pareceu uma grande idéia. Ele encontrou um bangalô de construção frágil, batido pelas intempéries, que parecia feito de papelão, cujo aluguel era de oitenta dólares mensais, mas, no último momento, a firma o mandou para Washington e eu mudei-me sozinho para o campo. Eu tinha um cão - tive-o pelo menos durante alguns dias, enquanto ele não fugiu -, um velho Dodge e uma criada finlandesa que me arrumava a cama, preparava a refeição matinal e murmurava para si própria a sabedoria finlandesa, diante do fogão elétrico.
Permaneci solitário durante um ou dois dias, até que, uma manhã, um homem que chegara mais recentemente do que eu me abordou na estrada.
- Pode informar-me como se vai para a aldeia de West Egg? - perguntou-me, desanimado.
Dei-lhe a informação. E, ao prosseguir o meu caminho, já não me sentia mais solitário. Eu era um guia, um desbravador de caminhos, um colonizador autêntico. Ele, casualmente, conferiu-me a liberdade de quem não se sente só.
E, assim, com o sol a brilhar e grandes rebentos de folhas a crescer nas árvores, exatamente como crescem as coisas nas rápidas películas cinematográficas, experimentei a familiar convicção de que a vida recomeçava com o verão.
Havia muito que ler e ainda muita saúde para se aspirar, em longos haustos, do ar vivificante. Comprei uma dúzia de volumes sobre operações bancárias, crédito e investimentos em apólices, e esses volumes lá estavam em minha estante, vermelhos e dourados como dinheiro novo recém-cunhado, prometendo revelar-me os cintilantes segredos, que somente Midas, Morgan e Mecenas conheciam. E eu alimentava ainda a elevada intenção de ler muitos outros livros. Eu era um tanto dado à literatura, em meus tempos de estudante: escrevi, num desses anos, uma série de artigos muito sérios e óbvios para a Yale News - e ia agora trazer de volta à minha vida todas essas coisas e converter-me de novo no mais limitado de todos os especialistas, o "homem bem informado". Isto não é apenas um epigrama: pode-se ver muito melhor a vida observando-a de uma única janela.
Deve-se apenas ao acaso o haver eu alugado uma casa numa das mais estranhas comunidades da América do Norte. Achava-se ela situada na comprida e turbulenta ilha que se estende a leste de Nova York - e onde há, entre outras curiosidades naturais, duas características topográficas nada comuns. A vinte milhas da cidade, um par de ovos enormes, de contornos idênticos e separados apenas por uma gentil baía, se lançam sobre a mais domesticada massa de água salgada do hemisfério Norte, o grande pátio líquido do Estreito de Long Island.
Não são perfeitamente ovais - pois que, como os ovos da história de Colombo, são um tanto achatados em sua base - mas sua semelhança física deve constituir uma perpétua fonte de espanto para as gaivotas que sobre eles voam. Para os que não têm asas, o fenômeno mais interessante é a dessemelhança existente, sob todos os aspectos, entre esses dois ovos, exceto em sua forma e tamanho.
Eu morava em West Egg, o... bem, o menos elegante dos dois, embora este seja um rótulo sumamente superficial para exprimir o contraste bizarro - e que não deixava de ser, de certo modo, sinistro - existente entre ambos. Minha casa ficava bem na ponta do ovo, a somente cinqüenta jardas de distância do Estreito, espremida entre duas enormes mansões, cujo aluguel, durante a estação, variava entre doze e quinze mil dólares. A da direita era colossal, comparada a qualquer construção do mesmo gênero: tratava-se, com efeito, de uma imitação de algum hôtel de ville da Normandia, com uma torre ao lado esplendidamente nova sob o seu tênue revestimento de hera, uma piscina de mármore e mais de quarenta acres de relvados e jardins. Era a mansão de Gatsby. Ou melhor, como eu não conhecia o Sr. Gatsby, era uma mansão habitada por um cavalheiro desse nome. Quanto à minha casa, era uma monstruosidade, mas uma monstruosidade insignificante, e, assim, fora deixada no esquecimento, de modo que eu desfrutava de uma paisagem parcial proporcionada pelos relvados do meu vizinho e da consoladora proximidade de milionários - tudo isso por oitenta dólares mensais.
Do outro lado da gentil baía, os alvos palácios do elegante East Egg cintilavam junto à água, e a história desse verão começa realmente na noite em que para lá me dirigi de automóvel, a fim de participar de um jantar em casa dos Tom Buchanans. Daisy era minha prima em segundo grau, e Tom fora meu colega de universidade. Logo depois de terminada a guerra, eu passara dois dias com eles em Chicago.
O marido de Daisy, entre outros feitos físicos, tinha sido um dos mais vigorosos jogadores de rugby que New Haven já conhecera - uma figura nacional de certo modo, um desses homens que atingem, aos vinte e um anos, tão grande e ilimitada excelência em alguma coisa que, depois, tudo em suas vidas cheira a anticlímax. Sua família era riquíssima; mesmo na universidade, sua liberdade em questões de dinheiro era motivo de censuras - mas agora tinha deixado Chicago e vindo para o Leste de uma maneira que quase deixava a gente sem fôlego: comprara, por exemplo, em Lake Forest, um lote inteiro de cavalos de pólo. Era-me difícil compreender como é que um homem de minha própria geração era suficientemente rico para fazer tal coisa.
Por que razão vieram eles para o Leste é coisa que não sei.
Tinham passado, sem razão alguma particular, um ano na França e, depois seguido, irrequietamente, de um lugar para outro, detendo-se onde quer que houvesse criaturas que jogassem pólo e fossem ricas em comum. Aquela era uma mudança permanente, dissera-me Daisy ao telefone; mas eu não acreditava nisso. Não me era possível ver o que se passava no coração de Daisy, mas eu pressentia que Tom andaria sempre a esmo, a procurar, um tanto anelantemente, a dramática turbulência de algum jogo de rugby irrecuperável.
E, assim, aconteceu que, numa noite cálida e ventosa, me dirigi para East Egg, em visita a dois velhos amigos que eu mal conhecia. Sua casa era ainda mais imponente do que eu esperava, uma alegre mansão colonial georgiana, vermelha e branca, que se elevava sobre a baía. O relvado começava na praia e avançava em direção à porta principal, numa extensão de um quarto de milha, saltando, por cima de quadrantes solares, muros de tijolos e canteiros de evônimos - e, finalmente, ao chegar à casa, desviava-se para o lado em vistosas videiras, como se atingisse o momento culminante de sua corrida. A fachada abria-se numa sucessão de portas envidraçadas, refulgentes sob os reflexos dourados do sol e escancaradas à tarde cálida e ventosa, e Tom Buchanan, em seu trajo de montaria, achava-se de pé, as pernas separadas, no alpendre fronteiro.
Ele mudara, desde os anos que passara em New Haven. Era agora um homem vigoroso, de trinta anos, cabelos cor de palha, boca um tanto dura e maneiras desdenhosas. Dois olhos vivos, arrogantes, estabeleceram domínio sobre o seu rosto, dando-lhe a aparência de alguém que estivesse sempre pronto a agredir. Nem mesmo o corte efeminado de suas roupas de montar conseguia ocultar o enorme vigor daquele corpo; ele parecia encher suas botas rebrilhantes até ao ponto de forçar os laços que as prendiam na parte superior, e podia-se notar o grande feixe de músculos a retesar-se, quando seus ombros se moviam debaixo do casaco leve. Era um corpo capaz de levantar grandes pesos - um corpo cruel.
Sua voz de barítono, áspera e fanhosa, aumentava a impressão de impertinência que ele causava. Havia nela um certo desdém paternal, mesmo quando ele se dirigia a pessoas de quem gostava - e, em seus tempos de New Haven, muitos rapazes detestavam aquela sua desfaçatez.
"Ora, não pensem que minha opinião sobre esses assuntos é decisiva - parecia dizer - só porque sou mais forte e mais homem do que você." Pertencíamos, então, ao mesmo grêmio de alunos do último ano e, embora jamais tivéssemos sido íntimos, eu sempre tive a impressão de que ele me via com bons olhos e queria, naquela sua maneira rude, insolente e sôfrega, que eu o apreciasse.
Conversamos alguns minutos no alpendre ensolarado.
- Tenho aqui uma bela casa - disse-me ele, lançando em torno um olhar inquieto.
Depois, tomou-me o braço e, virando-me para o outro lado, fez um largo gesto com a mão, abrangendo, embaixo, um jardim italiano, meio acre de olorosos roseirais e uma lancha a motor que balançava sobre as ondas.
- Isto pertencia a Demaine, o homem do petróleo. - Tornou a virar-me, delicada e abruptamente, para o outro lado: - Vamos entrar.
Atravessamos um alto saguão e entramos num aposento cor-de-rosa, fragilmente ligado à casa por amplas portas envidraçadas, situadas em ambas as extremidades. Essas portas, escancaradas, cintilantes em sua alvura, tinham por fundo o fresco gramado do jardim, cujo reflexo parecia penetrar um pouco pela casa. O vento, perpassando pelo salão, agitava as cortinas de um lado e de outro, como pálidas bandeiras, erguendo-as para o teto cremoso como um bolo de casamento, ou fazendo-as ondular sobre o tapete cor de vinho, formando uma sombra sobre o mesmo, como o vento faz sobre o mar.
O único objeto completamente imóvel no salão era um enorme divã, sobre o qual duas jovens mulheres flutuavam como se estivessem num balão ancorado. Trajavam ambas de branco, e seus vestidos ondulavam e adejavam como se elas tivessem acabado de pousar ali, após um breve vôo em torno da casa. Creio que fiquei um momento a ouvir o vergastar do vento de encontro às cortinas e o gemido de um quadro na parede. Ouviu-se então uma batida, quando Tom Buchanan fechou as portas envidraçadas de trás, e o vento, aprisionado, se extinguiu pela sala, enquanto as cortinas, os tapetes e as duas jovens mulheres, flutuantes, pousaram, lentamente, no chão.
A mais jovem das duas me era desconhecida. Estava estendida sobre o divã, completamente imóvel, o queixo um tanto erguido, como se equilibrasse sobre ele algo que estivesse a ponto de cair. Se me viu com o rabo dos olhos, não deu nenhum sinal disso - e, com efeito, em minha surpresa, quase balbuciei uma desculpa por a haver incomodado com a minha chegada.
A outra jovem, Daisy, fez menção de levantar-se; inclinou-se ligeiramente, com expressão grave; depois, riu - um risinho absurdo, encantador - e eu também ri, ao entrar na sala.
- Sinto-me paralisada de felicidade!
Tornou a rir, como se tivesse dito algo muito espirituoso, e ficou um momento a segurar-me a mão, a fitar-me o rosto, assegurando-me que não havia ninguém no mundo cuja presença
lhe causasse maior prazer. Essa era a sua maneira de ser. Insinuou, num murmúrio, que o sobrenome da jovem equilibrista era Baker. (Eu ouvira dizer que o murmúrio de Daisy tinha por objetivo fazer com que as pessoas se inclinassem diante dela... Crítica irrelevante, que nem por isso torna a coisa menos encantadora.)
De qualquer modo, os lábios de Miss Baker palpitaram, enquanto ela me cumprimentava com um sinal de cabeça quase imperceptível, ao mesmo tempo que, rápida, lançava de novo a cabeça para trás - pois que o objeto que ela estava equilibrando vacilara, evidentemente, um pouco, causando-lhe um pequeno susto. De novo uma espécie de desculpa me assomou aos lábios. Quase todas as exibições de completa auto-suficiência arrancam de mim um assombrado tributo.
Olhei para minha prima, que começou a fazer-me perguntas em sua voz profunda, emocionante. Era uma dessas vozes que o ouvido da gente segue em seus altos e baixos, como se cada locução fosse um arranjo de notas que jamais tornasse a repetir-se. Seu rosto era triste e encantador, com todas as coisas brilhantes que nele havia: olhos brilhantes, boca ardentemente viva - mas havia, ademais, em sua voz, algo excitante, que os homens que por ela se interessaram acharam difícil esquecer: uma compulsão cantante, um "Ouça" sussurrado, uma certeza de que ela acabara de fazer coisas alegres, excitantes, e a promessa de que outras coisas excitantes pairavam sobre a hora que haveria de seguir-se.
Falei-lhe de minha passagem por Chicago, durante um dia, em minha viagem para o Leste, e das pessoas que, por meu intermédio, lhe haviam enviado suas expressões de afeto.
- Eles sentem falta de mim? - exclamou ela, extasiada.
- Toda a cidade se acha desolada. Todos os automóveis têm as rodas de trás pintadas de preto, como uma coroa fúnebre, e, durante toda a noite, há um lamento incessante ao longo da margem norte do lago.
- Oh, é estupendo! Vamos voltar, Tom. Amanhã! - E acrescentou, irrelevantemente: - Você precisa ver minha filhinha.
- Gostaria imenso.
- Ela está dormindo. Tem três anos. Você nunca a viu?
- Nunca.
- Bem, precisa vê-la. Ela...
Tom Buchanan, que estivera a andar inquieto pela sala, deteve-se e pousou a mão em meu ombro:
- Que é que você está fazendo, Nick?
- Lido com títulos.
- Com quem?
Disse-lho.
- Nunca ouvi falar neles - observou, peremptório.
Isso me aborreceu.
- Mas ouvirá - respondi, incontinenti. - Ouvirá, se você ficar no Leste.
- Oh, ficarei no Leste, não se preocupe - respondeu lançando um olhar a Daisy e tornando a pousá-lo em mim, como se estivesse alerta, à espera de mais alguma coisa. - Eu seria um grande idiota, se fosse viver em outro lugar.
Nessa altura, Miss Baker exclamou:
- Inteiramente!
Disse-o de maneira tão súbita, que tive um sobressalto: era a primeira palavra que ela proferia desde que eu entrara na sala. Evidentemente, isso a surpreendeu tanto quanto a mim, pois, com uma série de movimentos ágeis, destros, pôs-se de pé no meio da sala.
- Sinto-me emperrada - queixou-se. - Estive deitada nesse sofá durante um tempo enorme.
- Não me olhe desse jeito - retorquiu Daisy. - Passei a tarde toda tentando levá-la a Nova York.
- Não, obrigada - disse Miss Baker, diante dos quatro coquetéis que acabavam de chegar da copa. - Estou em treino absoluto.
O dono da casa fitou-a com ar incrédulo:
- Ah, sim?
Tomou de um trago a sua bebida, como se fosse apenas uma gota dentro de um copo. E comentou:
- O que não consigo compreender é como vocês conseguem fazer alguma coisa.
Olhei para Miss Baker e perguntei a mim mesmo o que seria que ela "conseguira fazer".
Agradava-me olhá-la. Era uma moça esguia, de seios pequenos, porte ereto, que ela mais acentuava lançando os ombros para trás, como um jovem cadete. Seus olhos cinzentos, um tanto contraídos pela claridade, retribuíram-me o olhar com recíproca e cortês curiosidade, fitando-me do alto de um rosto pálido, insatisfeito, encantador. Ocorreu-me, então, que já a havia visto antes, ou um retrato dela, em algum lugar.
- Mora em West Egg? - indagou, com ar desdenhoso. - Conheço alguém lá.
- Quanto a mim, não conheço uma única...
- Deve conhecer Gatsby.
- Gatsby? - perguntou Daisy. - Que Gatsby?
Antes que eu pudesse responder que ele era meu vizinho, foi anunciado o jantar. Enfiando imperativamente o seu tenso braço sob o meu, Tom Buchanan obrigou-me a deixar a sala, como se movesse uma peça de xadrez sobre um tabuleiro.
Esguias, lânguidas, as mãos pousadas ligeiramente sobre os quadris, as duas jovens mulheres nos precederam, dirigindo-se a um alpendre cor-de-rosa, aberto para o pôr-do-sol, onde quatro velas bruxuleavam sobre uma mesa, sopradas pelo vento que já havia amainado.
- Por que as velas? - objetou Daisy, franzindo o sobrolho e apagando-as com as pontas dos dedos. - Dentro de duas semanas, teremos o dia mais longo do ano. - Olhou para todos nós, radiante. - Vocês também aguardam o dia mais longo do ano e, depois, o perdem? Eu sempre espero o dia mais longo do ano... e ele me passa despercebido.
- Devíamos planejar alguma coisa - disse, com um bocejo, Miss Baker, sentando-se à mesa como se estivesse se metendo na cama.
- Muito bem - volveu Daisy. - Que é que devemos planejar? - Voltou-se para mim, desvalida:
- Que é que as pessoas planejam?
Antes que eu pudesse responder, seus olhos pousaram, com uma expressão de horror, em seu dedo mínimo.
- Vejam! - queixou-se. - Eu o feri.
Olhamos todos. O nó do dedo estava arroxeado.
- Você é que fez isso, Tom - disse ela, em tom de acusação. - Sei que não fez de propósito, mas, de qualquer maneira, o fez. Eis aí o que ganho por haver casado com um homem rude, grande, grandalhão, um tipo de brutamontes que...
- Detesto a palavra brutamontes - protestou Tom, amuado -, mesmo que seja dita por brincadeira.
- Brutamontes - insistiu Daisy.
Às vezes, ela e Miss Baker falavam ao mesmo tempo, mas o faziam de uma maneira tão discreta e divertidamente casual, que aquilo não chegava jamais a constituir uma tagarelice, mas algo tão fresco como os seus vestidos brancos e a expressão de seus olhos, na ausência de todo desejo. Elas ali estavam, e aceitavam a Tom e a mim, fazendo apenas um delicado e agradável esforço no sentido de nos entreterem ou serem por nós entretidas. Sabiam que, depois, o jantar terminaria e, um pouco mais tarde, também a noite chegaria ao fim e seria, displicentemente, deixada de lado. Aquilo era completamente diferente do Oeste, onde as reuniões como aquela se processavam apressadamente, de frase em frase, até o fim, numa expectativa constantemente frustrada ou, então, em meio ao puro nervosismo do próprio momento.
- Vocês fazem com que eu me sinta incivilizado - confessei, após a segunda taça de um clarete notável. - Será que não podiam falar de colheitas ou coisa que o valha?
Eu nada queria dizer, em particular, com essa observação, mas foi ela recebida de uma maneira que eu não esperava.
- A civilização está caindo aos pedaços - irrompeu, violentamente, Tom. - Tive de tornar-me terrível pessimista a respeito de tudo. Você já leu The Rise of the Colored Empire, de autoria desse tal Goddard?
- Não - respondi, um tanto surpreso pelo tom com que foram ditas tais palavras.
- Bem, é um livro excelente, que todos deviam ler. A idéia é a de que, se não tivermos cuidado, a raça branca será... será completamente subjugada. É coisa científica; coisa provada.
- Tom está ficando muito profundo - comentou Daisy, com uma expressão de irrefletida tristeza. - Ele lê livros profundos, com palavras difíceis. Qual era mesmo aquela palavra que nós...
- Bem, esses livros são todos científicos - insistiu Tom, lançando-lhe um olhar impaciente. - Esse tal sujeito estudou a coisa a fundo. Compete a nós, que pertencemos à raça dominante, estar atentos; do contrário, essas outras raças dominarão o mundo.
- Precisamos derrotá-las - sussurrou Daisy, a piscar ferozmente os olhos em direção do sol incandescente.
- Devíamos viver na Califórnia... - começou Miss Baker, mas Tom a interrompeu, movendo-se pesadamente em sua cadeira.
- Essa idéia é a de que somos nórdicos. Eu o sou, você o é, você o é e... - Após meio segundo de hesitação, incluiu também a Daisy com um ligeiro aceno de cabeça, o que fez com que ela me piscasse o olho. - E, o que é mais, produzimos todas as coisas que fazem a civilização... Oh, ciência, arte e tudo o mais. Percebem?
Havia algo de patético em sua concentração, como se sua complacência, mais aguda do que antigamente, já não lhe bastasse. Quando, quase imediatamente, o telefone tocou dentro da casa e o mordomo se afastou do alpendre, Daisy aproveitou a interrupção momentânea e inclinou-se para mim.
- Vou contar-lhe um segredo de família - sussurrou-me, entusiasmada. - É a respeito do nariz do mordomo. Quer que eu lhe fale do nariz do mordomo?
- Foi para isso que vim aqui esta noite.
- Bem, ele nem sempre foi mordomo; costumava polir a baixela de prata de uma gente de Nova York que tinha um serviço de jantar para duzentas pessoas. Ele tinha de poli-la de manhã à noite, até que, finalmente, isso começou a afetar-lhe o nariz...
- As coisas iam de mal a pior - insinuou Miss Baker.
- Sim. As coisas iam de mal a pior, até que, afinal, ele teve de abandonar o emprego.
Por um momento, os últimos raios de sol caíram com romântico afeto sobre o seu rosto ardente; sua voz obrigou-me a inclinar o corpo para a frente, enquanto a ouvia, ansioso; depois, o fulgor extinguiu-se, e cada raio luminoso a ia deixando lentamente,
com pesar, como crianças que abandonam, ao anoitecer, uma rua agradável.
O mordomo voltou e murmurou algo junto ao ouvido de Tom. Tom franziu o sobrolho, afastou a cadeira e entrou na casa sem proferir palavra. Como se sua ausência despertasse rapidamente alguma coisa em seu íntimo, Daisy inclinou-se de novo para mim, a voz ardente, cantante:
- Adoro tê-lo aqui em minha mesa, Nick. Você me lembra uma... uma rosa, uma rosa absoluta. Não lhe parece? - ajuntou, voltando-se, em busca de confirmação, para Miss Baker. - Uma rosa absoluta?
Isso não era verdade. Eu nem de leve, sequer, me assemelho a uma rosa. Ela estava apenas improvisando, mas um calor envolvente se irradiava dela, como se seu coração estivesse procurando vir ao encontro da gente, oculto numa daquelas suas frases ofegantes, eletrizantes. Depois, subitamente, lançou o seu guardanapo sobre a mesa, desculpou-se e entrou na casa.
Miss Baker e eu trocamos breve olhar, conscientemente destituído de significação. Eu ia falar, quando ela se empertigou na cadeira, atenta, pedindo-me, com um "Psiu!", para que eu me calasse. Ouvia-se, vindo de uma sala contígua, um murmúrio abafado de vozes acaloradas, mas Miss Baker inclinou-se, sem nenhum constrangimento, procurando ouvir. O murmúrio, a certa altura, chegou a ser quase perfeitamente compreensível; depois decresceu, tornou a aumentar excitadamente e acabou por extinguir-se por completo.
- Esse Sr. Gatsby, a que se referiu há pouco, é meu vizinho - disse-lhe eu.
- Não fale. Quero ouvir o que está acontecendo.
- Está acontecendo alguma coisa? - indaguei, inocentemente.
- Quer dizer, então, que não sabe? - indagou Miss Baker, sinceramente surpresa. - Eu julguei que todo mundo soubesse.
- Eu não sei nada.
- Ora essa!... - fez ela, hesitante. - Tom tem uma mulher em Nova York.
- Tem uma mulher? - repeti, desconcertado.
Miss Baker fez um aceno afirmativo com a cabeça.
- Ela bem que poderia ter a decência de não telefonar na hora do jantar. Não lhe parece?
Antes mesmo que eu pudesse ter tido tempo de apreender bem o sentido de suas palavras, percebemos um esvoaçar de vestido e um ranger de botas de couro, e Tom e Daisy voltaram à mesa.
- Não pude conter-me! - exclamou Daisy, com tensa alegria.
Sentou-se, lançou um olhar perquiridor a Miss Baker e a mim, e prosseguiu:
- Olhei um momento para fora, e tudo estava sumamente romântico. Há no jardim um pássaro que deve ser um rouxinol! Deve ter chegado até aqui em algum navio da Cunard ou da White Star Line. Está ainda lá a cantar... Isso não lhe parece romântico, Tom? - indagou, com sua voz musical.
- Muito romântico - respondeu ele. E voltando-se para mim, com ar infeliz: - Se ainda estiver claro depois do jantar, gostaria de mostrar-lhe os meus estábulos.
O telefone tornou a tocar, insistentemente, mas como Daisy abanou a cabeça com ar peremptório, os olhos fixos em Tom, o assunto dos estábulos e, na verdade, todos os assuntos se dissiparam no ar. Dentre os fragmentos esparsos dos últimos cinco minutos que passamos sentados à mesa, lembro-me de que as velas tornaram a ser acesas, sem razão alguma, e de que eu tive vontade de fitar de frente cada um dos comensais, acabando, no entanto, por evitar todos os olhares. Não me era possível saber o que Tom e Daisy estavam pensando, e duvido que até mesmo Miss Baker, que parecia haver assimilado certo frio ceticismo, tivesse podido afastar de seu espírito o chamado urgente, estridentemente metálico, daquela quinta personagem. Para certos temperamentos, a situação talvez pudesse parecer curiosa... Meu instinto, porém, fez com que eu pensasse em telefonar imediatamente para a polícia.
Os cavalos, desnecessário dizer, não foram mais mencionados. Tom e Miss Baker, com o crepúsculo já a descer sobre ambos, caminharam de volta à biblioteca, como se se dirigissem a um velório onde houvesse um cadáver perfeitamente tangível, enquanto que eu, procurando mostrar-me agradavelmente interessado e um pouco surdo, segui Daisy, através de vários terraços ligados entre si, até o alpendre da frente. Em sua profunda obscuridade, sentamo-nos, lado a lado, num canapé de vime.
Daisy levou ambas as mãos ao rosto, como se palpasse os seus traços encantadores, pousando o olhar, aos poucos, na aveludada penumbra do jardim. Vi que emoções turbulentas a possuíam, de modo que lhe fiz o que julguei ser umas perguntas sedativas acerca de sua filhinha.
- Nós ainda não nos conhecemos muito bem, Nick - disse ela, subitamente. - Embora sejamos primos. Você não compareceu ao meu casamento.
- Eu ainda não tinha voltado da guerra.
- É verdade. - Hesitou um momento. - Bem, a verdade é que passamos por momentos muitos duros, Nick, e eu fiquei muito cínica a respeito de tudo.
Tinha razão para tal, evidentemente. Fiquei à espera, mas ela nada mais disse e, decorrido um momento, voltei, um tanto desajeitadamente, a falar de sua filhinha:
- Suponho que ela já fala... come, e tudo o mais.
- Oh, certamente! - Olhou-me, absorta. - Ouça, Nick; permita-me que lhe conte o que eu disse, quando ela nasceu. Gostaria de ouvir?
- Muitíssimo.
- Isso lhe mostrará como é que passei a encarar... certas coisas. Não fazia ainda uma hora que minha filhinha havia nascido e só Deus sabia onde Tom se encontrava. Voltei a mim, do éter que me deram para cheirar, sentindo-me completamente abandonada, e perguntei à enfermeira se a criança era menino ou menina. Respondeu-me que era menina. Voltei, então, o rosto para o outro lado e chorei. "Muito bem", disse. "Alegro-me que seja menina. E espero que ela seja uma tola... que é a melhor coisa que uma menina pode ser neste mundo. Uma linda tolinha."
Fez uma pausa e prosseguiu, com convicção:
- Agora, seja lá como for, acho tudo horrível. Todo mundo pensa assim... as pessoas mais cultas pensam assim. E eu o sei. Estive em toda parte, vi tudo e já fiz tudo. - Lançou em torno de si um olhar lampejante, desafiador, que se assemelhava, de certo modo, ao de Tom, e riu, com eletrizante desdém: - Sofisticada!... Santo Deus, como sou sofisticada!
No mesmo instante em que ela parou de falar, deixando de exigir minha atenção, senti a insinceridade básica de suas palavras. Aquilo me deixou inquieto, como se toda aquela noite não tivesse sido senão um truque destinado a produzir em mim certas emoções. Fiquei à espera e, passado um momento, ela me fitou com um sorriso absolutamente afetado em seu rosto encantador, como se houvesse confirmado a sua qualidade de sócia de uma sociedade secreta, bastante elegante, a que ela e Tom pertencessem.
Dentro, o salão carmesim esplendia de luzes. Tom e Miss Baker achavam-se sentados cada qual numa extremidade do longo divã, e ela lia-lhe em voz alta algo do The Saturday Evening Post - e as palavras, sussurrantes e incontaminadas, fluíam em tranqüilizante melodia. A luz do abajur, brilhante sobre as botas de Tom e fosca sobre os cabelos cor de folha outonal de Miss Baker, cintilava sobre o magazine, quando ela volvia a página com uma leve vibração dos músculos esguios dos braços.
Quando entramos, ela nos manteve um momento em silêncio, a mão erguida.
- Continua - disse ela, lançando a revista sobre a mesa - no próximo número.
Com um ágil movimento de joelhos, firmou o corpo e pôs-se de pé.
- Dez horas - observou, vendo as horas, ao que parecia, no teto. Hora de uma boa menina ir para a cama.
- Jordan vai participar, amanhã, do torneio em Westchester - explicou Daisy.
- Oh!... Então a senhorita é Jordan Baker.
Sabia, agora, por que razão seu rosto me parecia familiar... Aquele rosto já me havia fitado, com sua expressão agradável e desdenhosa, de muitas fotografias em rotogravura estampadas em publicações acerca da vida esportiva em Ashville, Hot Springs, Palm Beach. Ouvira também uma história a seu respeito, uma história maldosa, desagradável, mas não me lembrava mais de que se tratava.
- Boa noite - disse ela, suavemente
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