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7. O Caso Morel - Textos publicados na Folha

Autor foi tira de rua só por nove meses

(publicado em 25/06/1995)

Do enviado especial ao Rio

Rubem Fonseca, nascido em 11 de maio de 1925 em Juiz de Fora (MG), filho de Alberto Augusto Fonseca e Julieta de Mattos Fonseca, registro número 6.123 na Ordem dos Advogados do Brasil, teve uma carreira fugaz como tira de rua. Foram nove meses.

Seus relatos de ocorrências cobrem um ano e meio --de 31 de dezembro de 1952 a 26 de junho de 1954. Mas há um buraco, durante o qual estudou nos EUA.

Fonseca começou em São Cristóvão, passou pela Praça da Bandeira e Madureira, tudo na zona norte, e encerrou a carreira de rua em Botafogo, na zona sul do Rio.

Até ser exonerado, em 6 de fevereiro de 1958, seria um tira de gabinete. Foi cuidar do serviço de relações públicas da polícia. A partir de julho de 1954, recebeu uma licença para estudar e depois dar aulas de relações públicas na Fundação Getúlio Vargas do Rio.

A imagem do tira de rua não é uma hipérbole. O cargo de comissário nos anos 50 implicava sair à rua, apaziguar conflitos, investigar, correr atrás de bandido, prender e registrar a ocorrência.

À época, o Rio ainda não era uma cidade conflagrada. Em 1950, tinha 2,3 milhões de habitantes --e 75 mil deles eram funcionários públicos, barnabés do governo federal, como se dizia.

Os gêneros mais frequentes de ocorrência eram lesões corporais, provocadas por briga ou batida de carro, e furtos.

De vez em quando, o comissário anotava um homicídio, um suicídio ou adultério. No dia 15 de maio de 1953, Fonseca registrou um flagrante de adultério no livro de ocorrências de Madureira:

"As 3.30 horas, atendendo a despacho do dr. delegado na petição de Francisco de Paula Castro, dirigi-me à Estrada da Portela, nº 165, ap. 101, acompanhado dos investigadores Geraldo Achê e Jair Barbosa de Castro e do escrivão Carlos Ramos, todos lotados neste D.P., assim como das testemunhas João Duarte e Orlando José do Couto, onde prendi em flagrante adultério Amelia Augusto Castro, brasileira, casada, residente a av. Edison, rua A, lote 22, São Gonçalo, esposa de Francisco de Paula Castro, acima referido, e Emmanuel de Oliveira Leite, có-reu do adultério, viuvo, modelador, residente à rua Lucio de Araujo nº 75, Irajá (sic).

Os acusados foram encaminhados a cartório onde foi lavrado o competente flagrante".

Em "A Grande Arte" (1983), o advogado Mandrake expiaria a culpa do comissário Fonseca por indiciar um casal por adultério. "A existência do crime de adultério na lei brasileira era uma excrescência anacrônica que há muito devia ter sido extirpada", diz ele.

Madureira, um distrito enorme e trabalhoso, mas sem a vitrine propiciada por Copacabana, tinha um quê de velho Oeste em 1953.

Jorge Luiz Pastor, que foi delegado lá, diz que tinha até assalto a cavalo: "Havia umas carrocinhas que vendiam tripas puxadas a cavalo. O cavalo ficava no pasto enquanto o tripeiro vendia. Um dia, roubaram o cavalo e o sujeito saiu a cavalo assaltando as pessoas. Parecia um faroeste".

Só parecia. Por acaso ou azar, nenhum Billy the Kid ou qualquer outro caso famoso caiu nas mãos do comissário Fonseca em nenhum dos distritos em que trabalhou.

"Casos famosos demoram para aparecer na vida de um comissário", pondera Mário César da Silva, seu colega em Madureira.

Trabalho de rua também não era o forte de Fonseca. Desde a Escola de Polícia, ele já se interessava mais pelos aspectos psicológicos que movimentam a engrenagem de um crime do que pelo cipoal jurídico ou o trabalho pesado das ruas.

"Ele era um excelente aluno de psicopatologia. Tinha uma tendência de pesquisar o comportamento dos personagens", conta Silva.

"O Zé Rubem nunca foi um grande tira de rua. Ele era bom de gabinete", confirma Ivan Vasques. Ao contrário de Vasques, Fonseca nunca foi bom de pontaria com o Smith & Wesson calibre 38, modelo MP 10, que usavam.

"A última lembrança que eu tenho do Zé Rubem armado é ele dando um tiro que passou zunindo no meu ouvindo. Estávamos em Madureira", recorda Silva.

Rubem Fonseca era bom exatamente na matéria que mais gostava na Escola de Polícia --psicologia. E isso bastava para as exigências da época, segundo Silva: "Éramos mais juízes de paz, apartadores de briga, do que autoridades policiais. Zé Rubem via, debaixo das definições legais, as tragédias humanas e conseguia resolvê-las. Nesse aspecto, ele era admirável".

Tão admirável que foi um dos dez policiais cariocas escolhidos para estudar nos Estados Unidos. Entre setembro de 1953 e março de 1954, aprendia de dia com policiais norte-americanos e à noite fazia administração de empresas na New York University.

"Ele tentou fazer o curso de cinema na New York University, mas não conseguiu", diz Vasques. Cinema já era uma das obsessões do escritor desde o fim dos anos 40, na Faculdade de Direito.

Fonseca sabia inglês e funcionava como intérprete da turma, segundo Paulo Marano de Oliveira, que estudou com Fonseca nos EUA e morreu há três semanas aos 74 anos, dias depois de dar um depoimento à Folha. "Ele não nasceu para ser policial. Nasceu para ser diplomata ou escritor", disse.

A estada nos EUA funcionou mais como pregação do "american way of life" do que para aperfeiçoamento policial, segundo Edgard Delgado, 78, colega de Fonseca.

Valeu também pelo passeio. Foram a Washington, Chicago e Los Angeles. Em Los Angeles, o grupo foi convidado para uma festa na casa de Carmen Miranda, da qual restou uma foto. Mostra Fonseca, Carmen Miranda e Delgado em janeiro de 1954, como está anotado no verso. "Ela nos recebeu muito bem. O Zé Rubem tocou bongô na festa", recorda Delgado.

Na volta dos EUA, Fonseca ficaria dois meses no distrito de Botafogo. Foi estudar na Fundação Getúlio Vargas, onde seria aprovado em primeiro lugar num curso de seis meses de administração e relações públicas.

Impressionou tanto que seria convidado para dar aulas de relações públicas no ano seguinte.

A polícia perdeu Fonseca porque um chefe de polícia não permitiu que ele acumulasse as funções de comissário, professor e relações públicas da Light.

A carreira relâmpago, os nove meses como tira de rua, parecem ter sido suficientes para mudar um naco da literatura brasileira.

Até 1963, o mundo barra-pesada tratado por Fonseca era tão alienígena para a classe média que lê como as aranhas de Marte.

Fonseca abriu as portas da violência para esse público. Não poderia repetir a frase de Joseph Conrad (1857-1924), o capitão da Marinha inglesa e aventureiro que tornou-se escritor: "Vivi tudo aquilo". É citada, aliás, no conto "Agruras de um Jovem Escritor", de "Feliz Ano Novo" (1975).

Fonseca viveu uma parte daquilo tudo e conseguiu transformá-la em literatura. Não deixa de ser uma grande arte.(MCC)

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