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7. O Caso Morel
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I
Matos e Vilela se encontram na porta da penitenciária. Sozinho Vilela teria dificuldade para entrar, mas com Matos as portas são abertas. Chegam à cela de Morel.
Cubículo pequeno. Cama estreita com cobertor cinzento. Mesa cheia de livros; rádio portátil; pia; latrina; mais livros empilhados no chão.
Morel é um homem magro, pálido, cabelos escuros, grisalhos nas têmporas. Rugas fundas cortam seu rosto. Veste uma camisa branca e calça cinza, amassadas. Possivelmente dorme com aquela roupa.
"Tenho dois dos seus livros aqui."
Procura os livros, acha apenas um deles. "O outro sumiu. Você não quer sentar?" Morel indica a Vilela a única cadeira da cela.
"Vou deixar vocês sozinhos. Tenho ainda muita coisa para fazer", diz Matos.
"Obrigado." Morel aperta a mão de Matos.
"Vocês vão se dar bem. Quando quiser sair, bate na porta e manda chamar o inspetor Rangel."
Matos sai.
"Nem sei como começar", diz Morel. "O Rei disse para Alice 'começa no princípio, depois continua, chega ao fim e pára'. Mas onde é o princípio?"
Vilela: "Você também pode começar do fim e terminar no princípio, ou no meio".
"Preciso da sua ajuda."
"Diga como."
"Eu preciso escrever um livro. Matos não lhe falou?"
"Disse que você queria falar com um escritor."
"Quero ajuda para escrever um livro."
"Quanto menos ajuda dos outros, melhor."
Morel reflete por instantes.
"Estou muito arrasado."
"É assim mesmo que se escreve."
"Eu quero ter certeza de que vou ser publicado."
"Essa certeza você não pode ter."
Morel sentado na capa. Deita lentamente, com os braços cruzados sobre os olhos. Vilela pega um livro, sobre a mesa. Visão e invenção.
"Adianta escrever, se ninguém vai ler?"
"Adianta, sempre."
"Passo as noites sonhando com a minha carreira literária", a ironia na voz é forçada.
"Você quer um biscoito?"
Uma lata de biscoitos debaixo da cama.
Comem biscoitos.
"Onde você arranjou esse monte de livros?"
"São meus."
"Quem traz?"
"O doutor Matos. Dei a ele a chave da minha casa. Eu peço os livros ele vai na minha estante e apanha. Às vezes ele me compra um livro, mas o gosto dele não combina muito com o meu."
"Você já escreveu alguma coisa?", pergunta Vilela.
II
AVERTISSEMENT
Ce livre n'est pas fait pour les enfants, ni même pour les
jeunes gens, encore moins pour les jeunes filles. Il s'adres-
se exclusivement aux gens mariés, aux pères et mères de
famille, aux personnes sérieuses et mûres qui se préoccu-
pent des questions sociales et cherchent à enrayer le mou-
vement de décadence qui nous entraîne aux abîmes.
Son but n'est pas d'amuser, mais d'instruire et de moraliser.
Dr. Surbled, 1913.
Qualquer semelhança com pessoas vivas ou mortas é mera coincidência.
Lembro-me de que quando entrei no cabaré, em São Paulo, a velha Dorotéia foi logo pedindo que eu tocasse guitarra para ela. Infelizmente não era possível, eu não sabia tocar o instrumento.
Em Belo Horizonte o céu era limpo. Eu saía com os bolsos cheios de tangerinas e andava pelas ruas tentando chutar todos os caroços. Em bh eu não era músico.
"Vi logo pela sua cara que você era um homem do mar", disse Marlene Lima, que passou a vida tentando ser artista de cinema e agora era uma trintona jogada fora. Estávamos na Zona. Eu descrevia para Marlene as minhas aventuras pelos países da Ásia.
No Rio voltei à minha impostura de músico de orquestra. O porteiro do hotel me olhava respeitoso, ele queria ser músico, tentava o sax, o trombone, mas era fraco do peito.
Boîtes da cidade.
"Posso oferecer-lhe uma bebida?"
"Quem é você? Um industrial rico ou um vagabundo?"
"Industrial rico."
"De onde?"
"São Paulo."
"Ah. São Paulo... É longe de Porto Alegre?"
Ela tinha um sotaque de gringa européia. Grande, loura, olhos azuis. Havia conhecido um sujeito em Porto Alegre.
"Você conhece ele? Carlos Rocha?"
"Não."
Segurou no meu pau, perguntou: "Quer que eu lhe faça feliz?".
Queria me fazer feliz ali no cantinho do bar. Rápido e sem dor.
"Aqui não, vamos para outro lugar", eu disse.
"As pessoas pagam duzentos para ficar comigo."
"Está bem."
"Mas só se você tiver camisinha."
Saí e fui à farmácia.
Voltei para onde ela estava. Mostrei o pacotinho.
Eram três horas da manhã.
Saímos para pegar um táxi.
"Ilha do Governador."
O motorista não queria ir. Violento bate-boca entre nós. Eu e a mulher vencemos.
Uma pobre casa, incrivelmente quente. Dezembro. As paredes cheias de fotografias. Ela aos seis anos, aos sete. Aos quinze, aos dezoito. Sempre só. Nem pai, nem mãe. Só. Nem amigos.
"Você sabe, nós os trapezistas temos os pés muito afiados", ela disse. Foi então que eu soube que ela tinha sido trapezista, quando menina. Viera com os pais, que trabalhavam no Circo Sarrazani.
Pedi um uísque. Ela só tinha coca ou guaraná.
"Meu amigo de Porto Alegre é um intelectual. Eu não confio em intelectuais."
"Nem eu."
Durante quinze minutos ficou tirando grampos da cabeça.
Era bonita. Abri o fecho da minha calça e me exibi para ela.
"Calma, rapaz, onde é que está a camisinha?"
Os romanos inventaram a camisa-de-vênus, conforme Antonius Liberalis conta nas Metamorfoses. Em 1564 o dr. Fallopius redescobriu-a, ao recomendar o uso de um saco de linho como preventivo das infecções venéreas.*
(*) A narrativa de Paul Morel é freqüentemente interrompida por citações. Algumas são dele mesmo, outras de autores provavelmente lidos na prisão.
Me deu vontade de ir embora.
"Vou-me embora."
"Calma, rapaz."
Fui até o espelho que havia no quarto. Na verdade eu estava mesmo com a cara perigosa de sujeito com gonorréia.
Tentei telefonar para um táxi, sem conseguir.
"Vou-me embora."
Pela cara da ex-trapezista vi que ela estava tão na merda quanto eu.
"É por causa da camisinha?" Não tinha mais o ar de uma pessoa de pés espertos. Era uma mulher cansada.
"Não."
"Os duzentos cruzeiros? Essa é a razão?"
"Eu quero ir embora, é só isso."
Colocou o polegar na boca e começou a roer as unhas.
"Até logo", eu disse.
Ela disse: "Você não tem o meu telefone". Sem inflexão, como se não soubesse o que estava dizendo.
Eu: "É, não tenho o seu telefone".
Ela: "Você não tem o meu telefone".
Saí.
Pensei: Jamais alguém andou por estes lugares a pé, de madrugada. Fiquei com medo. Gritei "Paul Morel" várias vezes, para me habituar com o nome.
Na avenida Brasil apanhei um táxi.
Ao chegar no hotel encontrei um telegrama dizendo que minha mãe havia morrido e sido enterrada, na terra dela. Trazer de volta o corpo custava muito dinheiro.
Tempo.
Acordei, como sempre, com uma sensação de desperdício, naquele dia em que tudo começou e reencontrei Joana. Muitos anos se passaram.
Levantei da cama enojado comigo mesmo, sem lembrar direito se o papel ridículo que eu fizera tinha sido ontem ou na semana passada. Onde? Na casa de alguém? O que tinha acontecido?
Meu quarto todo desarrumado. Ao me separar de Cristina, uma neurótica compulsiva, eu dissera "quando você for embora, vou virar esta merda de pernas para o ar, chega de arrumação, aspiradores de pó, faxineiros que mexem nos meus livros e nos meus quadros, isto vai virar uma mata virgem".
As roupas jogadas no chão, junto com câmeras, lentes, fotos, garrafas, livros, pedaços de sucata, telas, tubos de tinta, discos, copos. Minha cabeça um palimpsesto.
Debaixo do chuveiro, sentado no chão, a água fria caindo em cima de mim. Isto que você está sentindo é náusea, eu disse em voz alta. O pior é que não havia vômito nenhum para sair, minha ansiedade era outra.
O telefone tocou. Saí pingando do chuveiro, disse que não estava ninguém em casa, aquilo era uma gravação, "as palavras o vento não leva, cuidado com o acetato".
"Você está sóbrio?"
"Não."
"Espera aí, não desliga, é o Roberto."
Queria que eu fizesse uma foto de cerveja.
"Não vou perder tempo com isso."
"É um challenge."
Em algum lugar da casa havia um monte de revistas internacionais de arte publicitária, e em nenhuma delas existia uma única foto de cerveja. Se houvesse, era uma merda.
"Vamos conversar", insistiu. Era um homem paciente.
"Agora estou todo molhado. Você me tirou do chuveiro."
"Eu ligo depois, então."
Ensaboando meu corpo: cada vez mais magro, as olheiras negras, uma figura romântica. As mulheres todas dando bola para mim. Repugnância.
Naquele dia eu estava decidido a parar de beber, me reintegrar na sociedade, ceder, transigir, maneirar.
"Farei tudo o que quiserem!", exclamei olhando o meu rosto no espelho.
O telefone tocou. Cocktail na casa de Miguel Serpa.
Depois novamente o Roberto. Ele era diretor da Andrade & Leitão.
Nada temos a temer.
Exceto as palavras.
"Você pode conversar?"
"Posso", respondi.
"Então? Topa fazer as fotos?"
Pensei um pouco. "Faço."
"Quando?"
"Amanhã. Hoje estou muito abafado."
"Certo. Amanhã. Um abraço. Conto contigo."
"Pode contar."
O verdadeiro escritor nada tem a dizer.
Tem uma maneira de dizer nada.
Miguel Serpa recebeu-me com muita deferência.
Muitas mulheres. Identifiquei logo a sra. Elisa Gonçalves. Coberta por um vestido longo, os movimentos equilibrados, tensos; sentia no meu próprio corpo cada passo que ela dava, como se estivéssemos abraçados. Elisa caminhava impaciente pelos salões, fumando, inquieta. Eu a conhecia de retrato e lenda. Nunca me interessou, mas naquele dia senti, inesperadamente, uma terrível atração por ela.
Elisa novamente: cara magra, ossuda, cabelos negros, boca larga de lábios grossos, olhos escuros brilhantes, um rosto alerta. Fiquei imaginando atos lascivos com ela.
Parei a certa distância, observando-a sem que ela percebesse.
Nesse instante surgiu Joana, acompanhada dos pais, embaixador e embaixatriz Monteiro Viana. Tentei segui-los com o olhar, mas eles logo sumiram no meio da multidão. Havia, no mínimo, trezentas pessoas no enorme apartamento de Serpa. Eu gostaria de ver Joana perto de Elisa. Joana dizia de Elisa: "Uma velhota deslumbrada que todo ano corta as próprias execráveis pelancas". Joana tinha vinte anos, exatos. Elisa no fim dos trinta.
Aproximei-me de Elisa. Ela e os circundantes pararam de falar.
"Todos os seus retratos foram malfeitos, nenhum tem profundidade, nenhum é você."
"Retratos?", Elisa, polidamente.
"Fotos. Só conheço as fotos. Permita que eu me apresente."
"Eu sei quem é você e não estou interessada." Elisa voltou a conversar com a pessoa a seu lado.
Vaguei pelos salões do Serpa, depois do desprezo de Elisa, bebendo com rapidez para ficar embriagado.
Encontrei Joana.
"Por que não damos o fora daqui?", perguntou Joana.
"Aonde você quer ir?"
"A um lugar onde você possa me explicar o que são as séries de Fibonnacci", disse Joana, rindo.
"Eu estou sem vontade. Acho que estou ficando impotente."
"Você quer ficar aqui no meio desses arrivistas enfarpelados?"
"Já disse que estou broxa. Ah!, quem me dera ser um campeão de alcova!"
A beleza dela fez o meu pulso martelar violentamente e secou minha boca. Ninguém poderia deixar de admirá-la: era muito delgada, com seios pequenos, a barriga plana, os flancos de linhas retas; o seu triângulo estava apenas eriçado por uma penugem macia. Ela me tantalizava, os meus desejos se exasperaram. Levantei o seu corpo e esmaguei os lábios contra os dela.
"Eu faço você ficar com vontade."
"Não sei."
"Vamos sair daqui e comprar um chicote", Joana disse.
"A esta hora não encontramos uma loja onde comprar isto", eu disse, sentindo um forte tremor correr por dentro do meu corpo.
"Eu vou na Hípica e arranjo um. Você não quer me bater de chicote?"
"Está bem."
"Eu saio na frente. Vou buscar o chicote e te encontro no apartamento."
Exit Joana.
Voltei à sala para ver se apanhava alguma mulher. Eu só pensava nisso. Encontrei.
"Você tem um papel na bolsa?"
"Deixa eu ver. Tenho."
"Tem uma caneta?"
"Tenho lápis de sobrancelha."
"Então escreve nesse papel o seu nome e o número do telefone." Botei o papel no bolso e saí.
No papel estava escrito: Lígia, e o número do telefone.
Peguei meu carro. Fui para o apartamento. Liguei o som. Esperei Joana, pensando.
Acima de tudo, seja verdadeiro com você mesmo.
Joana chegou.
"Trouxe o chicote?"
"Trouxe."
Joana me entregou um embrulho. Abri. Um chicote de cabo de prata, para ser usado em cavalos de raça.
Olhei para Joana, os colares no pescoço, o lenço na cabeça. Senti uma grande ternura por ela. Abracei-a.
"Eu gosto muito de você."
"Eu também gosto muito de você."
"Você quer ficar só namorando, sem fazer nada?", perguntei.
"É uma boa idéia."
Deitamos, abraçados.
"Estou aprendendo tanta coisa com você."
"Coisa nenhuma..."
"Cor. Eu não sabia nada de cor. Que mundo imenso..."
"A percepção da cor é uma experiência pessoal, extremamente subjetiva, é impossível ensinar a ver a cor, até mesmo ensinar a usar a cor é difícil".
"Fico em casa olhando meus livros de pintura e lembrando as coisas que você falou. Ontem, por exemplo, foi a visão esquizóide de Francis Bacon..."
A frase era literalmente minha. Eu tive vontade de dizer a ela que ultimamente eu falava cada vez menos. Arte tradicional, não queria mais fazer. Caixas, objetos, montagens fotográficas, fazia coisas assim, pois na verdade eu havia secado. Os cretinos dos críticos, esses pobres-diabos, rufiões de criatividade, ficavam descobrindo significados esotéricos naquele lixo todo.
Eu estava vazio, minha única saída era soldar sucata, colar, simular, tapear, copiar, enquanto pudesse.
Deitamos de barriga para cima. Joana, uma das pernas levantadas mostrando sua coxa longa e carnuda. Passei as mãos nas pernas de Joana. Ela estava com os braços abertos, as duas mãos sob a nuca; eu via as suas axilas, raspadas.
Não diga sovaco.
Diga axilas.
Beijei a cavidade que existia na junção do braço com o tronco. Fragrância de desodorante. Com a ponta da minha língua toquei o sovaco de Joana.
"Isso me deixa toda arrepiada."
Arrancamos a roupa, apressados.
"No chão", Joana disse.
Joana deitou-se, espreguiçou o corpo magro, esticando braços e pernas.
Deitei-me sobre ela. Joana grudou o rosto no meu. Afastei o rosto dela.
"Quero ver a tua cara enquanto vou entrando dentro de você."
A euforia de Joana me encheu de alegria e exaltação.
"Abre os olhos", eu disse, "olha pra mim!"
Os dois olhando um para o outro, enquanto nossos corpos se movimentavam.
Agarrei com força a cabeça de Joana, puxando-a de encontro a mim.
"Você não vai me bater?"
"Com o chicote?"
Nossos movimentos cada vez mais violentos.
"Como é que você vai me bater com o chicote? Aqui deitada? Ou eu saio correndo e você corre atrás de mim até me encurralar num canto e então me bate, bate, bate!..."
"Não sei, como você quiser", consegui dizer.
"Bate com a mão mesmo", Joana pediu.
Apoiado na mão direta, dei um tapa com a esquerda no rosto de Joana. Joana fechou os olhos, o rosto crispado, não emitiu um som sequer. Dei outro tapa, agora com a mão direita, com mais força.
"Bate, bate!"
Bati com violência. Joana deu um gemido lancinante. Continuei batendo, sem parar.
"Me chama de puta..."
"Sua puta!"
"Mais, mais!..."
Chamei Joana de todos os nomes sujos, bati com força no seu rosto. Nossos corpos cobertos de suor. Lambi o rosto de Joana, em fogo das pancadas recebidas. Nossas bocas sorviam o suor que pingava do rosto do outro. De dentro de mim, de um abismo fundo, vinha o orgasmo, uma pressão acumulada explodindo.
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