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Rubem Fonseca condena leitores ao amor e pesadelo

(publicado em 06/08/1997)

MATINAS SUZUKI JR.
Do Conselho Editorial

Chega amanhã às livrarias uma caixa com os dois novos livros do escritor Rubem Fonseca.

Um deles é ''E do Meio do Mundo Prostituto Só Amores Guardei ao Meu Charuto'', título tirado de dois versos do ''Poema do Frade'', de Álvares de Azevedo (1831-1852), a primeira novela (algo intermediário entre o conto e o romance, tem 112 páginas) que Rubem Fonseca escreve.

O segundo é um livro de contos ''Histórias de Amor'' (137 páginas) que traz, no final, o conto mais longo, chamado ''Carpe Diem'', o único texto quase não-inédito dos dois livros: ele foi publicado em separata, com o título de ''História de Amor'', em edição comemorativa (fora de mercado) do décimo aniversário da Companhia das Letras.

A caixa sai com tiragem de 25 mil exemplares e custa R$ 26. Nessa primeira edição, a Companhia das Letras informa que os livros não poderão ser adquiridos separadamente.

Não é fácil lançar livros de um escritor que, mesmo bastante conhecido, não gosta de dar entrevistas, participar de noite de autógrafos ou fazer leituras em público.

Na promoção de lançamento da caixa entrarão, no Rio, teco-tecos que sobrevoarão as praias puxando faixas com o nome dos dois livros e, em São Paulo, chamadas nos telões eletrônicos.

Os dois livros retomam alguns personagens de obras anteriores de Rubem Fonseca.

No ''Histórias de Amor'', por exemplo, reaparece, com a missão de matar uma velha em um sítio no conto ''O Anjo da Guarda'', o personagem que toma conta de um velho doente e transa com a enfermeira dele no conto ''O Livro de Panegíricos'', do livro ''Romance Negro'' (92).

No ''E do Meio do Mundo Prostituto...'', reaparece o advogado Mandrake (nome sugestivo, não só pelo herói-mágico dos HQ, mas também por ser mandrágora, planta usada em feitiçarias na Antiguidade e na Idade Média. Aliás, desse conto, saíram personagens para ''A Grande Arte'', ''Bufo & Spallanzani'' e para ''E do Meio do Mundo Prostituto...'', que podem formar um mundo de relações próprias dentro da obra de Fonseca).

O advogado (Fonseca também se formou em Direito) Mandrake deu título a um conto do livro ''O Cobrador'' (79). Mandrake aparece no conto e reaparece no romance ''A Grande Arte'' (83). Agora, em ''E do Meio do Mundo Prostituto...'', é o advogado de Gustavo Flávio, o escritor (não se esqueça de que Fonseca também é escritor) e personagem central, que também ocupou esse papel em ''Bufo & Spallanzani'' (romance que saiu em 86).

O delegado Raul (não se esqueça de que Fonseca foi também comissário de polícia) aparece em ''Mandrake'', reaparece em ''A Grande Arte'' e investiga o escritor Gustavo Flávio em ''E do Meio do Mundo Prostituto...''.

Um dos interesses do trio Mandrake-Gustavo-Raul é que eles são personagens com passado. E não deixará de ser um exercício agradável para o leitor o de reler ''Bufo'', ''A Grande Arte'' e o conto ''Mandrake'' após a leitura de ''E do Meio do Mundo Prostituto...'', em uma espécie de labirinto ao revés (todos os livros podem ser encontrados nas livrarias. O conto ''Mandrake'' também está em ''Contos Reunidos'', lançado em 94).

Nesse circuito dentro do curto-circuito de Rubem Fonseca, os prazeres dos personagens, além das mulheres, estão nos vinhos portugueses e nos Havanas (não se esqueça de que são duas paixões do escritor Fonseca). Esses últimos, na novela que está lançando agora, respondem pelos únicos momentos de plenitude possível.

Uma das violências que marcam a literatura de Fonseca sai não tanto dos crimes, mas da impossibilidade das relações humanas.

A premissa básica dos contatos é a desconfiança. O advogado desconfia do cliente, o delegado desconfia dos dois, as amantes desconfiam do escritor, que, por sua vez, acaba desconfiando da amante. Nem a literatura é confiável, porque também ela pode trair (ou ser traída. A literatura é uma busca desassossegada e incessante: os personagens não cessam nunca de procurar a resposta para o que é o escritor).

Não existe integridade humana entre os humanos. Há, apenas, a violência perpétua --e por isso mesmo atordoante-- do cinismo barato e pequeno, além dos assassinatos, é claro.

O crime, e as relações que se estabelecem em torno dele, é apenas consequência da impossibilidade geral de viver plenamente.

(A única relação baseada em confiança mútua se dá entre um homem e seu animal, mas não vou revelar em que lugar isso ocorre para não tirar o impacto seco do texto. No ''Bufo'', já havia o estranhamento de o leitor se dar conta, de repente, que dois personagens, Bufo e Marina, são, na verdade, um casal de sapos.)

Nesse sentido, nada mais emblemático do que a escolha dos versos de um escritor como o paulista Álvares de Azevedo, autor de ''Noite na Taverna'', para dar título ao livro.

Ele, uma das expressões locais da exacerbação do tédio (Leopardi: ''Nada há tão certo como o tédio'') de viver e maior representante da segunda geração do romantismo brasileiro. Nada se salva nessas relações degradadas, dizem Azevedo e Fonseca, a não ser aspirar à fumaça do charuto.

Além dos charutos, resta ao autor a construção do texto --esse sim, pode, se tiver força, independer das baixarias humanas.

Se o modelo de escritor citado várias vezes é nada mais nada menos do que o Marquês de Sade, o modelo de escrita é o da busca de perfeição de Gustave Flaubert, do qual derivou o nome artístico de GF, Gustavo Flávio, o escritor do ''Bufo'' e do ''E do Meio do Mundo Prostituto...''.

Os crimes de Rubem Fonseca são recheados de passageiras histórias de amor, de curiosas digressões sobre os mais diversos temas (o cozinheiro, por exemplo), de aceitação total da tecnologia (fala-se em chats, internet, e-mail, notebook), de consciência dos instinto reprimidos (a questão psicanalítica da retenção anal aparece na novela e também no conto ''Viagem de Núpcias'') e de citações do cinema (''O que seria do mundo se o cinema não tivesse sido inventado?'', perguntam-se constantemente os amantes do conto ''Carpe Diem'').

Nessa altura das nossas vidas, saturadas de crimes por todos os lados, dos reais aos imaginários, a resolução de um mistério não faz mais sentido para a literatura.

Toda a artimanha do escritor será empregada mais para vendar do que para desvendar, mais para construir e dar coerência à dúvida do que para destruir incertezas.

Rubem Fonseca condena os seus leitores a ficarem com o pesadelo. Essa seria uma das únicas maneiras de a ficção policial poder fazer ainda um corte incisivo na vida abestalhada do leitor de hoje. Nada elementar, meu caro Mandrake: trata-se de uma literatura que não se fecha.

Livros: "E do Meio do Mundo Prostituto Só Amores Guardei ao Meu Charuto" (112 págs.) e "Histórias de Amor" (137 págs.)
Autor: Rubem Fonseca
Lançamento: Companhia das Letras Quanto: R$ 13,50 ("E do Meio...") e R$ 15 ("Histórias..."). Os 25 mil primeiros exemplares serão vendidos numa caixa com os dois volumes, por R$ 26

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