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17. O Processo - Textos publicados na Folha

A teologia negativa de Kafka

(publicado em 01/03/1998)

Em seus romances escritor tcheco buscava uma nova forma de consciência judaica

HAROLD BLOOM
especial para a Folha

O que confere a Kafka uma autoridade espiritual tão única? Talvez a questão deva ser reformulada. Que espécie de autoridade espiritual tem Kafka para nós? Ou então: por que somos obrigados a lê-lo como alguém que teria tal autoridade? O que nos leva, afinal, a invocar a questão da autoridade?

A autoridade literária, seja como for definida, não tem relação necessária com a espiritual; e falar de uma autoridade espiritual na escrita judaica já é falar em termos muito ambíguos. A autoridade não é um conceito judaico, mas sim romano, e faz todo sentido hoje, portanto, no contexto da Igreja Católica Romana, mas não tem questões judaicas --e isso a despeito da sordidez da política israelense e do sentimentalismo frouxo das nostalgias judaico-americanas.

Não existe autoridade sem hierarquia, outro conceito não muito judaico. Ninguém precisa de rabinos, ou de quem quer que seja, para lhe dizer o que, ou quem é, ou não é um judeu. As máscaras da tradição normativa servem para ocultar não apenas o caráter eclético do judaísmo e da cultura judaica, mas a natureza do próprio Javé no Livro de Jó (isto é, nas passagens mais antigas da Bíblia). Seria absurdo pensar em Javé como uma figura de mera autoridade. Não se trata de uma divindade romana, amplificando atividades humanas, nem de um deus homérico, servindo de platéia para o nosso heroísmo.

Javé não é nem um fundador, nem um espectador, embora às vezes possa ser tomado como um ou outro, ou ambos. Seu tropo essencial é a paternidade, não a fundação; e suas intervenção são as de alguém disposto a fazer acordo, e não simplesmente olhar as coisas de fora. Não se pode fundar qualquer autoridade sobre ele, porque sua natureza benigna não se manifesta pela amplificação, mas pela criação. Javé não escreve: ele fala, e é ouvido, no tempo; e o que continua a criar com sua fala é o "olam", o tempo sem limite, que é mais do que uma simples amplificação.

A autoridade permite sempre um mais de qualquer coisa, mas não mais vida, que é a bênção em si, recaindo, para além da autoridade, sobre Abraão, Jacó e Davi. Nenhum deles, assim como Javé, manifesta meramente autoridade. Já Kafka tem certamente uma autoridade literária e, de forma conturbada, essa autoridade agora é espiritual também, especialmente num contexto judaico. Isto não parece ser só um fenômeno pós-holocausto, muito embora o gnosticismo judaico (oxímoro ou não) pareça apropriado, sem dúvida, ao nosso tempo.

O gnosticismo literário, de qualquer modo, não parece ser um fenômeno de época. "O Castelo", de Kafka, como Erich Heller já argumentou, tende claramente mais para o gnosticismo do que para a tradição normativa judaica, mas isso também é verdade sobre o "Macbeth", de Shakespeare, dos "Four Zoas", de Blake, e do "Sartor Resartus", de Carlyle. Pode-se distinguir um elemento judaico no gnosticismo aparente de Kafka, mesmo sem ir ao extremo de Gershom Scholem, que via ali uma nova cabala. Nos seus "Diários" de 1922, Kafka insinua sutilmente que até sua adesão ao negativo era uma questão de dialética:

"O negativo sozinho, por mais forte que seja, não é o bastante, como eu chego a pensar em meus momentos de maior desconsolo. Pois sempre que dou um mínimo passo acima, sempre que conquisto algum sentido de segurança, mesmo o mais dúbio, eu então me demoro e espero pelo negativo, não para que venha até mim, mas para me puxar para baixo. Trata-se portanto de um instinto de defesa, que me impede de gozar um conforto duradouro, por menor que seja, e desfaz a cama matrimonial, por exemplo, antes mesmo de ter sido feita".

O que vem a ser o negativo kafkiano, nessa passagem ou em qualquer outra? Podemos começar desprezando a noção parisiense de que tenha alguma coisa de hegeliano, assim como não há nada também de hegeliano na "Verneinung" (denegação) de Freud. O negativo de Kafka, ao contrário do de Freud, descende, em última instância, da tradição arcaica da teologia negativa, e talvez mesmo da mais negativa das teologias antigas, o gnosticismo; e no entanto Kafka, deixando de lado seus anseios de transcendência, une-se a Freud em sua aceitação da autoridade última dos fatos. Não há destruição do que está dado em Kafka, nem em Freud; e esse "dado" é essencialmente um "como as coisas são", para todo ser humano e particularmente para os judeus.

Se o fato reina supremo, então a mediação do negativo hegeliano torna-se um absurdo. Não há possível uso destrutivo de um tal negativo; o que significa dizer que Heidegger torna-se impossível, e Derrida, que é uma desleitura forte de Heidegger, torna-se inteiramente desnecessário.

O negativo kafkiano é mais simplesmente o seu judaísmo, ou seja, a forma espiritual da autoconsciência judaica em Kafka, exemplificada num aforismo extraordinário: "O que nos cabe é chegar ao negativo; o positivo já está dado". O positivo, aqui, é a Lei, as correntes normativas do judaísmo; o negativo não é tanto a nova cabala de Kafka, mas aquilo que ainda nos cabe: o judaísmo do negativo, de um futuro que não cessa nunca de correr na nossa direção.

Ernst Pawel, seu melhor biógrafo até hoje, enfatiza a consciência que Kafka tinha "de sua identidade enquanto judeu, não num sentido religioso, mas nacional". Mas Kafka não era sionista e talvez ansiasse menos pelo país do que por uma língua judaica, seja o ídiche ou o hebraico. Não percebia que sua espantosa pureza de estilo em alemão era precisamente um modo de não trair sua autoidentidade de judeu. Em sua última fase, Kafka pensou em se mudar para Jerusalém e intensificou, mais uma vez, os estudos de hebraico. Tivesse vivido mais tempo, provavelmente acabaria emigrando para a Palestina, aperfeiçoando o hebraico como língua viva e nos ofertando o espetáculo desconcertante de parábolas e histórias kafkianas escritas na língua de Judas Halevi.

Harold Bloom é professor de literatura nas universidades de Yale e Nova York; é autor, entre outros, de "A Angústia da Influência" e "Poesia e Repressão" (Imago). O Mais! publica mensalmente seus artigos.

Tradução de Arthur Nestrovski.

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