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17. O Processo - Textos publicados na Folha

Sobre Kafka

(publicado em 22/10/2000)

1. Qual é o principal legado literário de Kafka?
2. É legítimo vê-lo como o profeta da desesperança absoluta?
3. Ele deixou seguidores?

Márcio Seligmann-Silva responde
1. Pouquíssimos autores do século 20 conseguiram criar em sua obra um universo tão forte quanto Kafka. Ele está na origem de uma palavra que resume do melhor modo possível este século de totalitarismos --uma era antes de mais nada kafkiana. O legado literário de Kafka é, para sermos breves, a literatura deste século; o legado de Kafka tout court é o próprio século 20. Mas não enquanto uma era glamourosa. Kafka apresenta as entranhas deste século, a sua face doentia. Seu legado literário é também histórico: as gerações futuras lerão o século 20 a partir dele.

Em termos da literatura, ele abriu um campo novo na escrita (e nas artes) que não parou de se expandir: a literatura não mais apenas como encenação ornamentada e "figurada" do "outro", mas como espaço, vale dizer, local de uma metamorfose. A literatura para Kafka não é mais representação, mas sim manifestação, apresentação do ser --e da língua-- como "ser exilado" (que habita o labirinto). É "Klage", lamento sóbrio, e proximidade (até o limite) da morte.

2. Kafka não é o profeta da desesperança --muito menos absoluta. É verdade que ele afirmou uma vez a seu amigo Max Brod que "somos pensamentos niilistas e suicidas que surgem na cabeça de Deus". E ainda: "Há esperança suficiente, esperança infinita --mas não para nós". É verdade também que ele é autor de parábolas nas quais mensageiros nunca alcançam o seu destino, pessoas cavam sua própria cova, são torturadas ou são condenadas e esmagadas pelo "sistema judiciário". Mas sua própria literatura, por mais enigmática e densa que seja --e justamente por isso--, não pode ser resumida sob o signo da desesperança. Kafka fez uma literatura que é, a seu modo, engajada e política. Ele criou um universo poético que resiste à "prosa da vida" e a corrói.

3. Os leitores/seguidores de Kafka são inúmeros: Sartre, Beckett, Brecht, Camus, Peter Handke, Canetti, Musil, Blanchot, Orwell, Klossowski, Borges... Este, aliás, afirmou que "cada escritor cria seus precursores" e enumera desse modo outra estirpe de "seguidores" de Kafka, tais como Zenão de Eléia, Han Yu e Kierkegaard. Poderíamos acrescentar: Kleist, Chamisso, Hoffmann, Poe...

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