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17. O Processo - Textos publicados na Folha

O enigma do castelo

(publicado em 09/12/2000)

MARCUS MAZZARI

Entre os mistérios que emanam da obra de Franz Kafka (1883-1924) está o fato de não ter concluído nenhum dos seus três projetos de romance. O menos célebre desses é "O Desaparecido", que Max Brod trouxe à luz em 1927 sob o título "América" -- o próprio Kafka publicou apenas o primeiro capítulo, "O Foguista", em cuja página de abertura resplandece a Estátua da Liberdade empunhando uma espada. Figuração clarividente da moderna sociedade industrial, o romance anuncia, nos capítulos que narram o trabalho do herói no labiríntico hotel "Occidental", as opacas hierarquias de magistrados e funcionários de "O Processo" e "O Castelo".

Kafka não seria, porém, com menos força o "poeta da inescrutabilidade" se tivesse dado forma definitiva aos romances, pois estes já estão plenamente completos nas poderosas imagens que lhes infundem a dimensão do mistério. É também característico desse escritor fazer suas personagens refletirem sobre o sentido sempre impenetrável das vivências e relações humanas. Assim também no último romance, cujo protagonista é designado apenas por K.: entre os capítulos 15 e 20 o leitor o encontrará na escura cabana de Barnabás, que faz a ligação entre K. e os funcionários do castelo. Em conversas que mantém com Amália e sobretudo Olga, as irmãs do mensageiro, K. fica conhecendo a história da família, cuja marginalização se inicia com a recusa de Amália à grosseira abordagem sexual do funcionário Sortini.

Não falta aqui nenhum dos elementos que costumamos associar ao adjetivo "kafkiano": a obscuridade da culpa e da punição, o paradoxo, a espera interminável e absurda (o desespero do pai de Barnabás, ao interromper a espera suplicante por um funcionário, está entre as cenas mais belas e pungentes de Kafka). Também não falta a estrutura do labirinto, já que os fatos são vistos de todos os ângulos, resultando inextricável emaranhado. No momento em que a narração está prestes a ganhar nova ambiguidade, pois Olga diz nunca saber quando a irmã está falando a sério ou com ironia, K. corta-lhe a palavra com a exclamação: "Deixe de lado as interpretações!". Mas deixar de lado as interpretações é justamente o que não se faz nos longos diálogos do romance, e também por isso a história da família de Barnabás reúne em si todos os elementos que se encontram nas obras-primas do escritor.

"Deixe de lado as interpretações" poderia soar igualmente no nono capítulo do "Processo", que se passa na sombria atmosfera da catedral em que o sacerdote da penitenciária conta ao acusado Josef K. a famosa parábola "Diante da Lei": um homem do campo que espera a vida toda, diante de uma porta guardada por temível porteiro, para ingressar na lei, até que no momento da morte o porteiro lhe diz, como resposta à sua derradeira pergunta, que a porta estava destinada apenas a ele, fechando-a em seguida. Os dois examinam a história de vários ângulos, sem chegar, porém, a uma interpretação segura. "Você crê, portanto, que o homem não foi enganado?", pergunta K. em certo momento. "Não me entenda mal --disse o sacerdote. Apenas lhe mostro as opiniões que existem a respeito. Você não precisa dar atenção demasiada às opiniões. O texto é imutável, e as opiniões são muitas vezes apenas uma expressão de desespero por isso."

A chave perdida

A parábola ilustra de certo modo a situação do texto kafkiano em meio à copiosa bibliografia que o cerca, e, se algumas abordagens levantam a exigência de deixar de lado as interpretações, exprime-se assim a perplexidade diante de uma obra que, como nenhuma outra na literatura do século 20, suscita e ao mesmo tempo destrói as exegeses. Kafka teria tomado "todas as precauções possíveis" para dificultar a interpretação de seus textos, observa Walter Benjamin em 1934. E Adorno, que ao longo de 13 anos gestou algumas páginas a que deu o modesto título de "Anotações sobre Kafka", refere-se também a "uma arte de parábolas para as quais a chave foi roubada; e, mesmo quem buscasse fazer justamente dessa perda a chave, seria induzido ao erro". É, contudo, plenamente compreensível que nenhum dos dois pensadores tenha podido esquivar-se dos enigmas propostos por Kafka; e chega mesmo a espantar a ousadia da leitura histórico-política que faz Adorno dessa obra, "criptograma da fase final e resplandecente do capitalismo".

O fecundo paradoxo suscitado pela obra kafkiana está novamente à disposição do leitor na recente tradução de "O Castelo", assinada por Modesto Carone, a qual vem coroar o seu projeto de transpor para o português as narrativas do escritor tcheco. A uma tradução depurada certamente por longo convívio com o estilo, o tom, as menores peculiaridades da obra, segue-se um posfácio denso e objetivo, em que Carone reconstitui a gênese do romance, expõe as vicissitudes das primeiras edições e momentos fundamentais da recepção.

Procurando ainda situar "O Castelo" no conjunto da literatura kafkiana, Carone coloca-lhe ao lado apenas "O Processo" e "A Metamorfose", novela a que Elias Canetti chamou "o maior feito da ficção na literatura ocidental". Exageros à parte, raras vezes o protesto contra a reificação e a alienação soou de maneira tão poderosa como nesse texto que, ao invés de apelar à dignidade do homem, rebaixa-o, na figura do Gregor Samsa explorado pelo pai e pelo patrão, à condição de "monstruoso inseto". Mas, como Kafka escreveu "contos de fadas para dialéticos" (W. Benjamin), a novela consegue suscitar no leitor a indignação que se expressa, por exemplo, no ensaio "A Honra de Ser Inseto", de Hélio Pellegrino.

Que o ambiente familiar em que se dá a tragédia de Gregor não está muito distante das chancelarias e repartições do "Castelo", isso também se depreende de outra observação de Benjamin sobre a semelhança, baseada no sujo e sórdido, entre o mundo dos pais e o dos funcionários, ambos "gigantescos parasitas". Além do motivo da "sujeira", ainda vários outros convergem para o último romance, sendo portanto plenamente legítimo considerá-lo a "summa" desse universo ficcional. Parece ser essa a visão do tradutor, como sugere a alusão à obra magna de Goethe no título de seu posfácio, "O Fausto do Século 20".

Embora não explicitado, o paralelo deve-se certamente ao motivo da "aspiração". Mas, se é verdade que também em Goethe aspiração e errância formam um par inseparável ("Enquanto aspirar, o homem estará errando"), os esforços de Fausto são por fim redimidos pelas hostes celestes ("Quem sempre aspirando se esforça,/ Este podemos redimir"). Para entender a diferença cardeal que separa o mundo de "O Castelo" do horizonte goethiano da redenção, é necessário lembrar alguns passos do herói entre as escuras habitações da aldeia a que chega numa noite de inverno e a paisagem de neve dominada pelo misterioso castelo do conde Westwest no alto de uma montanha.

Por apenas uma semana estende-se a história, que começa com as dificuldades de K. para pernoitar na estalagem junto à ponte, já que não possui permissão oficial. K. declara-se então o agrimensor solicitado pelo conde, o que é primeiro desmentido e, logo em seguida, confirmado pelo castelo. Paradoxalmente, K. não recebe autorização para estabelecer-se na aldeia e, ao indagar quando poderia ir ao castelo, a resposta é "nunca". Começam então os esforços do incerto agrimensor para esclarecer a situação, mas o resultado já se prefigura na primeira tentativa de aproximar-se do castelo: "Assim, seguiu em frente, mas era um extenso caminho. Pois a rua em que estava, a principal da aldeia, não levava à encosta do castelo, apenas para perto dela, e depois, como que de propósito, fazia uma curva e, embora não se afastasse do castelo, também não se aproximava dele". Logo K. vislumbra no âmbito do erótico uma possibilidade de enfrentar esse labirinto de curvas e círculos (refletido muitas vezes nas circunvoluções da sintaxe), e o primeiro passo será a conquista de Frieda, espécie de garçonete na Hospedaria dos Senhores, distinguida pela condição de amante do todo-poderoso Klamm, figura proteiforme na imaginação dos camponeses e demais aldeões.

Na impossibilidade de sumariar os esforços do herói no sentido de desvendar a misteriosa ordem do castelo, mescla de instituição feudal e moderno aparelho de controle do indivíduo, valeria apontar ao menos para alguns momentos de sua empresa "fáustica", começando com a entrevista com o prefeito da aldeia, em uma sala abarrotada de processos, autos, dossiês etc . Nesse mundo protocolado e arquivado, K. fica conhecendo meandros inimagináveis da administração do castelo, com suas incontáveis "autoridades de controle" e funcionários tão implacáveis como o italiano Sordini, a quem coube investigar o extravio de antiga ordem referente à nomeação de um agrimensor (a existência de um Sordini e um Sortini, assim como a semelhança estandardizada dos dois ajudantes de K., insere-se na estratégia narrativa de dissolver contornos nítidos, multiplicar as dúvidas e contradições, relativizar e obscurecer os fatos.)

Se na conversa com o prefeito a dinâmica do castelo se mostra a K . por via indireta, no penúltimo capítulo lhe é dado presenciar o ruidoso despertar de funcionários que pernoitaram na Hospedaria dos Senhores e a disputa generalizada entre estes para abocanhar a maior quantidade possível de processos. K., aliás, só consegue presenciar essa cena interdita porque acaba de sair do quarto do funcionário Bürgel, onde foi parar por engano. Mas justamente esse engano lhe propicia a chance de sua vida, pois, se uma parte em demanda, conforme expõe Bürgel, conseguir surpreender um funcionário no meio da noite, poderá obter deste a realização de qualquer pedido.

Surpreendido e inteiramente vulnerável, Bürgel passa a discorrer sobre essa possibilidade, para a qual sugere não haver lugar no mundo; e, de fato, a exaustão física impede K. de reconhecer a situação e alcançar por fim o cumprimento de sua aspiração.

Resta apenas, ao término do episódio, o balanço do funcionário: "Só que existem, com certeza, possibilidades que de certo modo são grandes demais para serem aproveitadas; há coisas que não malogram em nada a não ser em si mesmas".

Dilema fundamental

Malograda a oportunidade única de romper a situação absurda em que ingressou ao chegar à aldeia, K. é arremessado de volta ao dilema fundamental: se o ingresso no castelo se tornou ainda mais difícil, abandonar agora sua aspiração significaria assumir em definitivo o vazio da liberdade que experimentara após a longa e vã espera por Klamm, no oitavo capítulo, "como se, ao mesmo tempo, não existisse nada mais sem sentido, nada mais desesperado do que essa liberdade". Tal como chegou até nós, o texto de "O Castelo" não permite vislumbrar saída para o dilema do herói. Sabe-se, porém, que Kafka planejava concluir o romance com um momento de máximo paroxismo: a luta contra a burocracia do castelo levaria K. à completa exaustão e, moribundo, receberia enfim uma concessão para estabelecer-se na aldeia.

Apesar dessa morte paradoxal, um final feliz para a história, o momento da redenção para o "Fausto do Século 20"? Certamente não, considerando tal desfecho à luz das últimas palavras de K. na conversa com o prefeito: "Não quero favores do castelo, mas aquilo que é o meu direito".

Marcus V. Mazzari é professor de teoria literária na USP e autor do livro "Romance de Formação em Perspectiva Histórica" (Ateliê).

O Castelo
Franz Kafka
Tradução: Modesto Carone
Companhia das Letras
(Tel. 0/xx/11/ 3846-0801)
488 págs., R$ 35,00

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