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22. Dublinenses - Textos publicados na Folha
Obras-primas no banco dos réus
(publicado em 23/11/1997)
MARIA LÚCIA GARCIA PALLARES-BURKE especial para a Folha, de Londres
Um livro que conta como uma jovem mulher, "faminta de sexo", satisfaz sua "fome" com o guarda-caça de seu marido paralítico, onde são descritas "em grande detalhe" 13 relações sexuais, em que "a palavra 'fuck' ou 'fucking' aparece em não menos do que 30 vezes" não é um livro que necessariamente tende a "depravar ou corromper" seus leitores?
Foi exatamente nesses termos que, em outubro de 1960, o promotor público Griffith-Jones convidou os membros do júri britânico, reunidos no Old Bailey --o fórum londrino para casos criminais--, a decidir sobre a legalização da última obra de D.H. Lawrence, ''O Amante de Lady Chatterley''.
O processo tivera início em agosto, quando a editora Penguin Books divulgara seu plano de colocar nas bancas, a preço "de alguns cigarros", milhares de cópias da obra proibida. Monopolizando a atenção da mídia européia e americana durante meses, o julgamento acabaria por se transformar num dos mais espetaculares eventos culturais do século.
Com ele chegava ao fim 32 anos da vida ilegal de um livro que desde 1928 provocara reações divergentes e apaixonadas. Aldous Huxley, por exemplo, o considerava "um livro estranho e lindo", epílogo de um gênio numa busca inglória por um mundo melhor. Já outros, mesmo grandes admiradores de Lawrence, lamentavam que ele tivesse escrito tal "lixo".
Vinte e sete anos antes, o processo contra o livro ''Ulisses'', de outro gigante da literatura de língua inglesa deste século, James Joyce, também provocara semelhante rebuliço na cenário cultural: acusado de obsceno e corruptor pelas autoridades norte-americanas e apreendido em entrada ilegal pela alfândega de Nova York, o volumoso e controverso livro de Joyce, publicado por uma pequena editora parisiense, em 1922, se transformou num marco da história cultural e literária do Ocidente.
A decisão do juiz John M. Woolsey em favor da obra não só determinou que a importação e publicação de ''Ulisses'' eram legais como confirmou a previsão de Joyce que, ao saber da decisão, afirmara satisfeito: "Agora que metade da população de língua inglesa se rendeu, a outra metade logo deve segui-la". De fato, as autoridades britânicas acataram sem alarde o veredicto vindo da antiga colônia e não mais condenaram o livro como obsceno.
Por outro lado, a progressista decisão de Woolsey iria servir como um importante precedente no processo movido pelas autoridades inglesas contra D.H. Lawrence, em 1960, processo que, como veremos mais adiante, foi bem mais movimentado e dramático do que o seu predecessor.
Problemas com a censura ''Ulisses'' já começara a enfrentar desde sua publicação seriada na revista ''The Little Review'' de Nova York entre 1918 e 1920. Levados a julgamento por publicarem matéria obscena, os editores foram obrigados a suspender a série e a pagar multa. Apesar de talentoso, o advogado não conseguira convencer os juízes de que o livro tinha analogia com a pintura cubista e que, em vez de sexualmente excitante e indecente, era, na verdade, em muitas passagens até asqueroso. ''Ulisses'', argumentara ele, "faz com que as pessoas fiquem bravas... mas não que se joguem nos braços de uma sereia".
Sem júri, sem testemunhas de defesa ou acusação e com pequena platéia, o julgamento que iria liberar ''Ulisses'', em 1933, foi relativamente discreto. Se se pode falar em uma estrela do caso, esta foi incontestavelmente o juiz Woolsey, a quem coube, com exclusividade, a decisão final.
Logo de início as partes interessadas haviam concordado que o julgamento por júri não era aconselhável ao caso, dado o volume e a complexidade da obra banida. Assim, uma pequena e luxuosa sala da Ordem dos Advogados de Nova York foi o palco da audiência informal com o juiz que passara meses na "pesada tarefa" de estudar um livro "nada fácil de ler ou de entender". A discussão com o advogado de defesa e o promotor foi bastante amistosa e deixou antever a decisão final que seria anunciada poucos dias depois, a 6 de dezembro de 1933.
Comparando a censura literária com a Lei Seca --que coincidentemente seria abolida na mesma semana da liberação de ''Ulisses''--, Woolsey disse ser contra a censura, pois, "tão logo se suprime algo, o contrabandista entra em cena". Segundo observadores, um dos momentos mais decisivos e humorísticos da audiência foi quando Ernst, o advogado de defesa, argumentou que o uso de palavras como ''fuck'' em ''Ulisses'' não deveria ser motivo de censura, já que esta era uma palavra que provavelmente tinha como origem o ato do agricultor colocar a semente no solo. "E isso, Vossa Excelência, tem mais integridade do que o eufemismo usado diariamente em muitos romances modernos para descrever precisamente o mesmo evento", como "dormir junto"; ao que o juiz, com um sorriso, acrescentou: "O que muitas vezes nem mesmo é verdade!".
O veredicto de Woolsey foi considerado de fazer inveja a muitos críticos literários, tal a lucidez, sensibilidade e concisão com que a obra de Joyce foi analisada. Sem equiparar o escritor irlandês a Shakespeare ou Dante, como fizera o advogado de defesa, Woolsey mostrou, no entanto, que, ao contar em mais de 700 páginas a história de um único dia na vida de dois habitantes de Dublin, Joyce revelara com brilhantismo todo o labirinto da mente humana. Com "sucesso espantoso", fizera "um sério experimento num novo... gênero literário" e pusera a nu, como numa cena cinematográfica, a complexa e intrincada interação de experiências e impressões passadas e presentes, conscientes e inconscientes, e seus efeitos na vida e no comportamento das pessoas.
A obscuridade de muitas passagens, bem como o uso de palavras indecentes eram, segundo Woolsey, aspectos obrigatórios desse esforço hercúleo de reconstituir a vida interior dos indivíduos, onde o inteligível, o sublime, o ininteligível e o asqueroso muitas vezes se sucedem e se confundem.
Lendo o livro na sua totalidade, e não em passagens isoladas, ficava evidente, argumentara Woolsey, que ''Ulisses'' fora escrito sem "intenção pornográfica" e que a excessiva preocupação dos personagens com temas sexuais fazia parte do realismo do autor. E, aludindo à fama da sensualidade céltica --contrastante com a frigidez anglo-saxônica--, o juiz lembrou com humor que tanto o local como a época do ano onde se passava o romance eram propícios ao sexo: afinal, "seu local era céltico e a estação era a primavera!''.
Quanto à alegação de que a obra levava à luxúria, contra a opinião corrente o juiz argumentou que um livro deveria ser julgado de acordo com seu efeito "em pessoas com instintos sexuais médios" e não em pessoas voluptuosas. E, considerando que muitas partes de ''Ulisses'' podiam provocar vômito no leitor, mas que em parte alguma ele era "afrodisíaco", Woolsey concluiu o veredicto afirmando: "±'Ulisses' pode, portanto, ser admitido nos Estados Unidos".
O julgamento de Woolsey foi recebido com entusiasmo até mesmo pelo promotor e por muitos dos que consideravam ''Ulisses'' um livro não só difícil como enfadonho e intragável.
Segundo J. Casey, especialista em Joyce da Universidade de Cambridge, o julgamento de ''Ulisses'' foi uma tentativa de se fugir à concepção de arte do romantismo e de, considerando o que dizia Hegel sobre a "falácia do didatismo", não avaliar uma obra a partir de critérios externos de moralidade, obscenidade ou decência. Com intenção descritiva (e não normativa), Joyce apresentara a consciência de dois personagens na sua plenitude, e o resultado final fora "claramente indecente e obsceno"; mas, também, "sincero, autêntico e verdadeiramente expressivo". Ou seja, o juiz tentara dizer que, diante das qualidades de ''Ulisses'' enquanto obra de arte, "nada mais podia ser dito sobre ele". O ranger de dentes dos membros e simpatizantes da Sociedade para a Supressão do Vício, que insistiam que ''Ulisses'' era "um produto da sarjeta" e uma mistura de blasfêmia e pornografia, não conseguiu reverter a decisão de Woolsey.
Ironicamente, o autor de ''O Amante de Lady Chatterley'', contemporâneo de Joyce e seu colega nas desventuras com a censura, se vivo em 1933 teria provavelmente apoiado mais a opinião destes últimos do que a de Woolsey. Para D.H. Lawrence, ''Ulisses'' era pior do que Casanova e o solilóquio de Molly no final do livro era "a coisa mais suja, mais indecente e obscena jamais escrita". Na verdade, com visões contrastantes do mundo e da arte, Joyce e Lawrence não puderam reconhecer a genialidade um do outro e passaram a vida sem jamais se encontrar ou entender.
Para Lawrence, o estilo de Joyce pecava pela falta de vida e espontaneidade, enquanto o sexo em sua obra era tratado mecanicamente e sem a deferência e respeito que a sublimidade do tema exigia. Por sua vez, Joyce, um gênio na observação e descrição da mente humana, menosprezava o estilo sentimental de Lawrence e considerava ''O Amante de Lady Chatterley'', com seu objetivo terapêutico, uma "peça de propaganda" desprezível. Como já se afirmou, "Joyce simplesmente representava; Lawrence pregava".
É isso que talvez explique a mais tardia liberação da obra de Lawrence, os epítetos de "homem santo" ou "fascista" e "sexista" que se aliaram a seu nome e a paixão com que ainda hoje se discutem os perigos ou os benefícios que ''O Amante de Lady Chatterley'' pode representar para a sociedade. Pornográfico e racista, deveria ser processado por transgredir o Race Relations Act, propôs recentemente um crítico. Lawrence é autor obrigatório contra as ilusões da globalização, disse outro.
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