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22. Dublinenses - Textos publicados na Folha
O grande circo nacional
(publicado em 23/11/1997)
Uma amiga de Lawrence chegou a levar volumes da obra escondidos na sua calcinha
MARIA LÚCIA GARCIA PALLARES-BURKE especial para a Folha
Os males da civilização industrial, as fraquezas do intelecto e o iminente colapso que aguarda a humanidade se nada de drástico for feito contra o amor ao poder e ao dinheiro são, na verdade, temas recorrentes em toda a obra de Lawrence.
''Minha religião'', dizia ele, "é a crença no sangue e na carne como sendo mais sábios do que o intelecto". Mas é em ''O Amante de Lady Chatterley'', no seu entender "um romance fálico terno e delicado" --que pensou intitular ''Ternura''--, que o papel redentor do amor e do sexo foi mais claramente explorado. "É estritamente um romance da consciência fálica contra a consciência mental de hoje", confessou a uma amiga.
Tão logo o livro começara a tomar corpo na romântica Villa Mirenda, na Toscana (onde se refugiara), Lawrence já previu as dificuldades de trazer sua obra a público, devido à mensagem inusitada e à impropriedade da linguagem. Representar uma sociedade profundamente polarizada, na iminência de desintegração moral e social --onde a paralisia física e emocional de sir Clifford (o marido ultrajado) tinha grande papel simbólico-- e propor a "consciência fálica" como antídoto ao mal era muita ousadia. "O mundo o considerará impróprio", confessou a amigos, "mas é um trabalho terno e sensitivo e, eu penso, próprio e necessário... O livro precisa ser lido --é uma bomba... mas muito verdadeiramente moral".
De início já não fora nada fácil encontrar quem o datilografasse. A pessoa que iniciara o trabalho em Florença o abandonara no meio, horrorizada com a "indecência". A Maria Huxley, fiel admiradora e amiga de Lawrence, coubera, enfim, a tarefa de incorporar ao texto os "piores pedaços" da "parte fálica".
Financiar uma publicação independente fora também o único meio que o autor encontrara de garantir uma edição sem cortes, risco que nenhuma editora comercial estava disposta a correr.
Tendo publicado a obra em uma pequena tipografia de Florença, fazer chegá-la às mãos dos leitores britânicos e norte-americanos exigira também astúcia e perseverança tanto de Lawrence quanto dos poucos amigos que lhe davam apoio. Com lances que lembram as artimanhas do submundo literário do Antigo Regime estudado por Robert Darnton, pouco a pouco a pequena edição de mil cópias foi sendo distribuída clandestinamente aos livreiros e subscritores. Para driblar a censura britânica que farejava pacotes suspeitos remetidos de Florença, uma amiga, por exemplo, chegara a carregar em sua calcinha alguns volumes da obra proibida.
Em 1930, dois anos após a tumultuada publicação de ''Lady Chatterley'', Lawrence deixou o mundo em circunstâncias semelhantes a Oscar Wilde, 30 anos antes. Doente, longe de sua terra (de onde o risco de prisão o afastara definitivamente) e ressentido com amigos, editores e críticos, D.H. Lawrence se foi aos 44 anos de idade.
O Reino x ''Lady Chatterley'' Só três décadas mais tarde ''O Amante de Lady Chatterley'' seria publicado legalmente no Reino Unido. Um pouco antes, em 1959, num julgamento relativamente discreto ele fora liberado nos Estados Unidos. Mas, dessa vez, o veredicto não atravessaria automaticamente o Atlântico, como acontecera no caso de ''Ulisses''.
Nos cinco dias de duração do julgamento, as 35 testemunhas da defesa chamadas a depor (enquanto outras 35 ficavam à disposição nos corredores do tribunal) se esmeraram na defesa do "mérito sociológico e educacional" de ''Lady Chatterley'' e do "bem público" que adviria de sua publicação e livre circulação.
Conceituados profissionais de várias áreas, como, os críticos Raymond Williams e Richard Hoggart, os escritores E.M. Forster e Rebecca West, o político Roy Jenkins e o bispo de Woolwich, bem como obscuros mas respeitáveis professores, diretores e diretoras de escolas, psicólogos, editoras, jornalistas, e membros do clero, conseguiram a façanha de convencer o júri (nove homens e três mulheres) de que ''Lady Chatterley'', apesar de suas páginas e páginas de cenas picantes, e até eventualmente obscenas, era uma leitura essencial para o mundo moderno; tarefa, diga-se de passagem, muitíssimo facilitada pelo esnobismo e arrogância do promotor público e do juiz responsável. Dizia-se que a prendada e devota mulher deste dignitário tricotara uma pequena sacola para que ele pudesse carregar o livro vicioso sem macular a vista de terceiros.
Consta que Joyce se vira frustrado na esperança de que o julgamento de seu livro causaria furor e sensação equiparáveis ao famoso processo de 1857 movido na França contra Flaubert, acusado de ultrajar a moral pública e a religião com seu ''Madame Bovary''. Tivesse Lawrence manifestado o mesmo desejo, ele, certamente, não teria se frustrado. Tão espetacular a ponto de ser descrito como "um grande circo nacional", o julgamento de ''Lady Chatterley'' causou tumulto e sensação em várias frentes.
Prevendo (acertadamente) que o lançamento de Summerhill ocorreria na mesma semana da liberação de ''Lady Chatterley'', A.S. Neill, comentou: "Gostaria de ter tido tanta publicidade quanto Ela!". Como ilustrara um famoso cartunista da época, o julgamento se revelara bem mais excitante do que o livro.
Na imprensa, leitores comuns e intelectuais se envolveram em debates sobre a santidade ou diabolismo de Lawrence, sobre a importância do sexo no casamento, sobre os rumos da moralidade britânica, sobre a influência das leituras nas pessoas e até sobre a arte do guarda-caça e a história social dos palavrões. Ávidos leitores, curiosos sobre as aventuras da "lady" com Mellors (seu amante), tumultuaram as ruas do país nas proximidades das livrarias, enquanto livreiros denunciavam os atravessadores que lhes roubavam o lucro e os armazéns de comida que competiam indevidamente pela venda do livro liberado.
Na Casa dos Lordes, os sustentáculos da tradição, patrões dos guardas-caças e simpatizantes de sir Clifford, se mostraram inquietos com a desagregação social que poderia advir da leitura de tal obra por membros da classe trabalhadora. Não me oporia a que minha filha lesse tal livro, teria dito um dos lordes, mas seria totalmente contra tal leitura por meu guarda-caça.
A pacata Eastwood, vila de Nottinghamshire onde nascera Lawrence, também se viu transtornada pela avalanche de turistas, que, segundo consta, descobriram, horrorizados, que lá ele era confundido com o Lawrence da Arábia. Finalmente, a Igreja Anglicana se viu em dificuldades com a inesperada declaração do bispo de Woolwich de que ''Lady Chatterley'', apesar de relatar um adultério, era um livro que todo cristão deveria ler.
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